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Biocritica - Uma questão de conta...

BiocríticaTeatrojornal conta...

Reverberar o gesto crítico

12.1.2021  |  por Valmir Santos

Foto de capa: João Cordioli

A história do Teatrojornal – Leituras de Cena é devedora da cultura de jornalismo. Entrei em contato com ela na adolescência, frequentando a  biblioteca pública de São Miguel Paulista, bairro da zona leste de São Paulo onde nasci e fui criado. Preferia ler jornais a gibis. No atual ensino médio, meados dos anos 1980, convenci a diretora da escola a apoiar a criação de um informe rodado em folhas de sulfite mimeografadas, o Matéria-Prima. Fazia as vezes de “editor” convencendo colegas da turma a escrever poemas, crônicas, notícias do cotidiano dos secundaristas. Nunca mais quis exercer outra profissão que não a de jornalista.

O primeiro emprego formal, no entanto, foi de contínuo na seção de eletrólise da Companhia Níquel Tocantins, no mesmo bairro (1985). A empresa extraía o minério de Niquelândia (GO) para refinar, mergulhar numa solução e transformar em placas mediante passagem de uma corrente elétrica. Tínhamos de usar botas e capacete ao circular pela área de produção. Anos depois, fui promovido a auxiliar de escritório do departamento de pessoal, distante do chão da fábrica, para cuidar dos processos de admissão. Cada funcionário tinha uma pasta suspensa e elas abarrotavam as gavetas nos arquivos de aço.

Apesar das possibilidades profissionais, desgostava das áreas de química e de administração. Fiz acordo para ser demitido quando cursava o terceiro ano de comunicação social, habilitação jornalismo, e bati à porta da redação do Diário de Suzano (1989), cidade localizada no percurso entre as estações de trem de São Miguel e de Mogi das Cruzes, onde estudava na UMC. O salário e os benefícios eram menores e trabalhava-se o dobro, sem registro. Após três meses, ocupei vaga de repórter em O Diário de Mogi (1989), sob condições mais dignas. Na editoria de Cidades, cobria de reclamação de buraco na rua a rebelião na cadeia. Em 1992, o jornal regional fundado em 1957 criou seu primeiro suplemento cultural, Caderno A, do qual fui editor. Aquela redação se tornaria, de fato, a escola em que me especializaria na cobertura teatral. Contava com uma página semanal para escrever acerca das produções locais e das estreias em São Paulo, além de me permitir os primeiros esboços da prática da crítica.

Talvez essa seja uma das premissas a considerar. Noções de convivência, de coabitação, tão caras à cena na contemporaneidade, são incontornáveis para quem pratica a crítica hoje na internet, sem o guarda-chuva da indústria do jornalismo, por exemplo. Isso pressupõe horizontalidade nas relações com artistas, desprezar presunções e vieses hierarquizantes sem abrir mão de incumbir-se do exercício de criticar. Não se trata de reinventar a roda. Alguns profissionais do passado praticavam essa conciliação intelectual. Importa respeitar as diferenças para que as relações de artistas e críticos não sejam intoxicadas e fustiguem fantasmas de lado a lado

Sem qualquer influência familiar – ou próxima – para pender às artes cênicas, assim como ao jornalismo, tomei gosto de ir ao teatro no fim da década de 1980. Adquiria ingressos com descontos em cartelas ou através da Campanha da Kombi. A alquimia ganhou corpo com a experiência de ator amador no Grupo Pombas Urbanas (1989-1993), na condição de um dos fundadores do núcleo dirigido pelo peruano Lino Rojas (1942-2005).

Foram essas as matrizes de minha trajetória e assim desejei representá-las na certidão de nascimento do site: Teatrojornal. Tudo junto: o primeiro composto grafado em maiúscula, porque milenar, e o segundo em caixa-baixa, filho da modernidade. Naturalmente, é comum que as pessoas associem o nome à forma teatral de encenar notícias surgida na Revolução Russa (1917), praticada nos Estados Unidos e reinventada no Brasil em 1970, quando o dramaturgo e diretor Augusto Boal (1931-2009) estreou sua última peça no Teatro de Arena, Teatro jornal: Primeira edição, conforme contextualiza o pesquisador Eduardo Campos Lima em Coisas de jornal no teatro (Expressão Popular, 2014). Por outro lado, a remissão involuntária a Boal e à geração que encarou a ditadura civil-militar não deixa de nos recordar da relevância da consciência crítica.

Nos dez anos em que fui repórter e redator da Folha de S.Paulo (1998-2008), como colaborador ou contratado, sublinhei a cultura do teatro na prática do jornalismo cultural. Entrevistava criadores, lia dramaturgias e invariavelmente assistia a ensaios para produzir os textos de apresentação das principais estreias. Cobri festivais nacionais e internacionais para os quais o jornal era convidado ou custeava a viagem. Testemunhei as primeiras reuniões do movimento Arte contra a Barbárie e a consequente conquista, pelos artistas, do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo (2002). Como se lê, um espírito de época, nem tão distante assim, em que a atividade jornalística era intensa e os modos de criar, de produzir e de se organizar no teatro avançavam com consistência, seja pela relativa estruturação dos grupos mais propensos à pesquisa continuada, vide políticas públicas incipientes, seja pelo estabelecimento do circuito dos musicais na cidade, a face econômica mais bem fornida do setor.

Oswaldo Mendes Os jornalistas e críticos Valmir Santos e Beth Néspoli no lançamento de ‘Bendito maldito: uma biografia de Plínio Marcos’ (Leya), de Oswaldo Mendes, ocorrido no Tuca em 2009

A intenção de abrir o site surgiu no fim de 2009, quando precisava redefinir caminhos. Também já havia me desligado do trabalho paralelo de professor de jornalismo na atual Universidade Cruzeiro do Sul (1998-2000 e 2002-2009), onde, além da sala de aula, coordenei o programa Refletor por sete anos, uma revista eletrônica cultural exibida semanalmente no Canal Universitário de São Paulo.

Era desejo continuar escrevendo, agora de maneira independente, e reunir o acervo de textos. Para tanto, carregava os pressupostos do fazer jornalístico na apuração, na relação com as fontes e na ambição de falar a outros públicos que não somente as pessoas familiarizadas ao universo do teatro. Longe da ilusão de audiência massiva voltada à crítica de teatro, intuía, auspicioso, difundir conteúdo de qualidade, contracenar com pensamentos artísticos de todos os quadrantes e estimular o interesse por esta arte ancestral.

Vi a transição das máquinas de datilografar para os computadores nas redações, porém jamais tive blog, passei ao largo do Orkut e ignorava a internet para além do mero endereço de e-mail. Contatei o ator e web designer Marcelo Meniquelli, que conhecera atuando pela Cia. Estável de Teatro em O auto do circo. Desenhamos o site com resquícios de padronização jornalística, como se a homepage fosse diagramada por “editorias”, inclusive com o “arquivo” de reportagens e críticas relativas ao jornalismo de teatro exercido havia 18 anos (certo apego a essa noção me levou a comprar, nos anos 1990, um arquivo de aço e montar uma hemeroteca na qual ainda mantenho pastas com recortes de jornal por assuntos, em ordem alfabética, ou exclusivas para Antunes Filho, José Celso Martinez Corrêa, Gerald Thomas, crítica, cenografia, literatura, filosofia etc.). A primeira postagem saiu em 20 de março de 2010 e trazia a cobertura do Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá.

Aos poucos, fui me adaptando à dinâmica do território digital e baixei a guarda quanto às ideias fixas da cultura da mídia impressa que ainda trazia na cabeça, em termos de forma e conteúdo. A liberdade emanada, contudo, não significou a ruptura do vínculo com o pensamento crítico cultivado na tradição jornalística em diferentes momentos da história do Brasil. Sou tributário da leitura ou da troca pessoal com autores que escreveram ou escrevem em cadernos de cultura ou de variedades em São Paulo, não necessariamente jornalistas. Para citar alguns nomes: Aguinaldo Ribeiro da Cunha, Alberto Guzik, Décio de Almeida Prado, Edelcio Mostaço, Jefferson Del Rios, João Apolinário, Luiz Fernando Ramos, Maria Lúcia Candeias, Maria Lúcia Pereira, Mariangela Alves de Lima, Miroel Silveira, Nelson de Sá, Sábato Magaldi e Sérgio Salvia Coelho.

Após os dois primeiros anos conduzindo o leme sozinho, senti necessidade de firmar parcerias. As adesões de Maria Eugênia de Menezes (a partir de 2012) e de Beth Néspoli (2014) conformaram uma equipe de editores forjada nas redações dos jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo, cientes de que enquanto o gesto crítico desperta a consciência, sujeito e sociedade acríticos sucumbem. Em nossas meditações a respeito da linha editorial, buscamos valorizar a reflexão que conjugasse densidade e verticalidade, em articulação com o presente histórico, as questões sociopolíticas e as relações conviviais. Tanto na dimensão do texto como na do encontro.

O site passou por reformulações em 2012 e 2015, inicialmente a partir das ideias do webdesigner Cassiano Tosta, o mesmo que concebeu o endereço digital da Cia. Hiato (SP), e depois com colegas dele do estúdio de criação e design Reppublica, de São José dos Campos (SP), o desenvolvedor web Paulo Menzinger e o diretor criativo Luiz Bezerra. Uma relação de oito anos que nos permitiu conhecer mais sobre a navegação e, eles, sobre as conexões teatro e jornalismo.

Em 2014, o site começou a abrigar colaboradores de sua cidade e de diferentes Estados, fruto da circulação deste autor por mostras e festivais, mais atividades formativas e reflexivas das quais participou. Convidadas e convidados se dispunham a escrever voluntariamente. Vislumbramos a possibilidade de operarem feito “correspondentes” em diferentes pontos do país, como se traçassem uma mapa representativo da produção teatral. Às vezes o texto enviado era a reprodução do original publicado em outra espaço. Aos poucos, essa alternativa foi deixada de lado, priorizando-se produções inéditas. Essa tônica atravessou os anos de 2015 e 2016 embalada pelo primeiro subsídio que o Teatrojornal conseguiu em seu quinto ano de existência, e via edital público, uma raridade.

Agência Ophelia A jornalista e crítica Maria Eugênia de Menezes durante o 30º Encontro com Espectadores, em junho de 2019, do qual participaram criadores do espetáculo ‘As cangaceiras, guerreiras do sertão’, o diretor Newton Moreno e a atriz Luciana Lyra

O “Concurso de apoio a projetos de publicação de conteúdo cultural no Estado de São Paulo” fora lançado em 2014 pela Secretaria de Cultura do Estado, por meio do Programa de Ação Cultural (ProAC). Um problema na documentação desabilitou a inscrição do Teatrojornal, que voltou à carga no ano seguinte. Afinal, ainda não conhecia política pública que contemplasse publicação cultural compreendendo etapas de criação, desenvolvimento e manutenção de publicação impressa ou digital de conteúdos relacionados a diferentes linguagens, “visando estimular o conhecimento e o interesse pela cultura por parte do público”. O edital considerava como conteúdos “pesquisas artísticas, críticas culturais e suas interfaces, ensaios, relatos, cartografias, mapeamentos de expressões culturais, periódicos, revistas, fanzines, blogs, sites e outros formatos (…), desde que visem à divulgação ou à reflexão sobre determinado aspecto do campo da cultura”. Linhas alvissareiras que sinalizavam entendimento da relevância da mediação crítica para a cidadania.

O site apresentou o projeto Crítica Militante, selecionado pela comissão no módulo 1, que destinava R$ 50 mil a dez proponentes pessoa jurídica. A execução se deu entre maio e dezembro de 2016, resultando na publicação de 72 críticas, artigos ou resenhas inéditos. Estabelecemos cotas a 16 agentes da escrita, incluindo o trio de editores, e cada autor ou autora recebeu R$ 630,00 por conteúdo, ou seja, um total de R$ 45.360,00. O restante foi empregado numa adaptação do site para receber a ação e em outras rubricas.

Estava tão ávido pela possibilidade de remunerar as pessoas que, por falta de experiência, não levei em conta o trabalho de quem editava, dava devolutiva, publicava o texto no site, administrava os pagamentos, fazia as transferências bancárias e prestava conta junto à secretaria. Acumulei algumas dessas tarefas e aprendi um bocado sobre o que não fazer.

Boa parte dos meandros da produção compartilhei com colaboradores compreensivos: o dramaturgo e pesquisador Afonso Nilson (SC); o crítico e pesquisador Daniel Schenker (RJ); a professora Dirce Waltrick do Amarante (UFSC); o jornalista e crítico de Zero Hora Fábio Prikladnicki (RS); o professor, escritor e compositor Fernando Marques (UnB); o professor e pesquisador Ferdinando Martins (USP); o professor, pesquisador e diretor do Grupo Teatro do Concreto Francis Wilker (UFC/DF); a jornalista, dramaturga e crítica Gabriela Mellão (SP); a jornalista Helena Carnieri (PR); o jornalista, crítico e curador Kil Abreu (SP); o jornalista e crítico Mateus Araújo (PE/SP); a jornalista e crítica Michele Rolim (RS) e a professora e pesquisadora Patricia Freitas (SP). Antes desse pessoal, outros colaboradores marcaram presença de forma voluntária, como a jornalista Clarissa Falbo (PE); a jornalista, crítica e pesquisadora Julia Guimarães (MG); a jornalista, escritora e professora Mayara de Araújo (UFC/CE) e o jornalista e escritor Rafael Duarte (RN)

Aos poucos, a vocação para a escrita evoluiu às dinâmicas presenciais. No 23º Festival de Curitiba, em 2014, o site realizou, com apoio da organização, a Roda do Teatrojornal: Panorama Crítico do Fringe e da Mostra Oficial. Uma jornada matinal de três horas em que jornalistas, críticos e pesquisadores analisaram a programação sob aspectos formais e temáticos dos espetáculos. Era uma sexta-feira da reta final do evento e frustrou o comparecimento nulo de espectadores espontâneos, digamos assim. Erramos na estratégia de divulgação (a multiplicidade de peças e afins) ou mesmo em imaginar que isso se daria ente 9h30 e 12h30. Em contrapartida, a participação de alguns artistas e a disponibilidade de profissionais que cobriam o festival superou expectativas. Lembro-me de que compareceram à Cinemateca de Curitiba, outra apoiadora, a jornalista e crítica Luciana Romagnolli (do site Horizonte da Cena), o jornalista, curador e criador Luiz Felipe Reis (então em O Globo) e o jornalista e crítico Gustavo Fioratti (Folha de S.Paulo), além de outros colegas.

Em junho de 2016, em pleno transcurso da Crítica Militante, sobre a qual falamos há pouco, o Teatrojornal idealizou e implantou a ação presencial Encontro com Espectadores, uma conversa que se espera triangulada entre artistas, críticos e espectadores. Soou natural que a primeira edição tivesse lugar no Ágora Teatro, centro de formação e produção teatral do qual o ator Celso Frateschi é um dos fundadores, em parceria com a arquiteta, cenógrafa e figurinista Sylvia Moreira. Porém, a dupla, generosamente, convidou os editores do Teatrojornal a realizar os demais encontros nesse endereço do popular bairro do Bixiga, sem terem de arcar com os custos da abertura do espaço nas noites de segunda-feira, na maioria delas voltada exclusivamente para realização do encontro.

Agência Oplhelia A atriz Denise Fraga, o diretor Luiz Villaça e a moderadora Beth interagem com o público acerca da peça ‘Eu de você’, tema do 35º Encontro com Espectadores em novembro de 2019

O diálogo tinha como objeto de análise um espetáculo previamente escolhido. Era ressaltado o aspecto da oralidade, intrínseco à roda, de maneira que pudesse atrair o espectador interessado em aprofundar conhecimento. A ação intentava, assim, contribuir para a expansão da experiência de recepção da obra em pauta e, quem sabe, da arte em geral. Numa mensagem de 1º de julho de 2016, enviada às pessoas que compareceram ao primeiro encontro, dividimos convicções e esperanças:

O ideal, claro, é que todos os presentes tenham visto o espetáculo. Afinal, a experiência de interação é o cerne do Encontro com Espectadores. O objetivo é que a gente consiga ir além do gostei ou não gostei, do julgamento se é bom ou ruim, tem ou não talento, e aproveitar esses encontros para ampliar a relação com o espetáculo. Que a gente possa abrir o leque das questões, pensar em empenho e desempenho. Cada obra de arte implica muitas escolhas, temas, texto, modos de atuação, técnicas, e cada uma dessas escolhas se dá a partir de visões de vida e arte, de princípios. Para o espectador, tudo parte daquela experiência vivida ali, no calor da hora, de interação afetiva, intelectual, emocional, corporal com a obra. Mas ela não termina ali, não é? A gente segue elaborando. E a ideia é ampliar os elementos de articulação a partir desses encontros. E mesmo os artistas presentes, os criadores, quando na plateia são espectadores. E é essa vivência tão especial, ser espectador de teatro, que propomos ampliar nesses encontros. É o nosso desejo. A forma de fazê-lo… Vamos aprimorar fazendo.

Até o fim de 2017 aconteceram 14 edições no Ágora Teatro. Naquele período, o Encontro com Espectadores era executado de maneira diletante – por parte dos editores do site, dos gestores do espaço e dos artistas que aceitavam participar sem pró-labore. Beth e eu cotizávamos o vinho com o qual brindávamos ao final de cada edição. Não divulgávamos o mimo coletivizado, mas era a forma de celebrar a presença de cada pessoa que se se permitia interagir comentando ou simplesmente escutando as observações de quem critica e as conjecturas de quem ousa pôr a obra de pé.

A cada ocasião eram recolhidos os endereços de e-mail de todos os novos integrantes do público. O mailing tornou-se um canal de comunicação para avisar sobre a escolha dos futuros espetáculos, a edição e publicação das conversas ocorridas ou, ainda, de textos críticos sobre as obras em pauta no Encontro com Espectadores. Além disso, o convite à participação era feito pelos próprios artistas, ao final de cada apresentação de sua peça na temporada, bem como por meio de suas redes sociais.

Nos anos de 2018 e 2019, o Encontro com Espectadores – o nome inicial era Encontro com o Espectador, mas atenuamos a marcação de gênero – passou a ser apoiado pelo Itaú Cultural. A instituição acolheu a ação em sua sede, na Avenida Paulista, e a incorporou à programação no último domingo de cada mês, às 15h. Justamente o dia da semana em que a via pública costuma ser fechada a automóveis, conspirando para uma ocupação civilizatória por pedestres, malgrado as tardes em que amargamos atravessar manifestações da extrema direita para chegar ao prédio. Artistas e mediadores receberam cachê. Idem para a jornalista e agitadora cultural Neomisia Silvestre, uma das articuladoras da Marcha do Orgulho Crespo Brasil, que cuida das transcrições do Encontro com Espectadores (2016-2019), assim como das redes sociais do site (2018-2021), função depois exercida pela jornalista Graziela Delalibera (desde junho de 2021).

Como dito, todas as edições presenciais – com interpretação na Língua Brasileira de Sinais (Libras) – foram gravadas em áudio e depois transcritas, editadas e publicadas no Teatrojornal. Cada encontro era objeto de texto para a coluna do evento no portal do IC.

Em dois anos, foram realizadas 22 edições que, somadas às 14 do Ágora, perfazem 36. Todas documentadas. Detalhando um pouco mais, a idealização do Encontro com Espectadores aconteceu no início de 2016, quando Beth e eu participamos do programa Camarim em Cena, produzido pela equipe do IC. Tal ação propunha um “bate-papo entre público e artistas” mediado por um convidado, e assim colaborávamos. A preparação de um roteiro de perguntas – que propiciasse não apenas uma visão panorâmica de trajetória, mas também o pensamento crítico que moldou escolhas e rumos dos criadores em foco – inspirou a realização da nossa ação presencial.

Carol Marinho Martin Santos, a atriz Denise Weinberg, o ator Celso Frateschi e Beth durante a primeira edição do Encontro com Espectadores, na sala do Ágora Teatro, em 27 de junho de 2016

Não por mera coincidência, a atriz Denise Weinberg, entrevistada pela Beth em maio de 2016, no Camarim, participou da primeira edição de Encontro com Espectadores, em junho de 2016. Ela estava em cartaz com o monólogo O testamento de Maria, do irlandês Colm Tóibin, que projeta a mãe de Jesus angustiada e com dificuldades para entender as opções feitas pelo filho recém-crucificado. O convite foi devidamente estendido ao ator Celso Frateschi, uma vez que a proposta articulava criticamente os dois solos nos quais atuavam, ele em O grande inquisidor, segunda parte da Trilogia do Subterrâneo. A peça transpôs para a cena uma parte do romance Os irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski: na Espanha do século XVI, um cardeal da Igreja Católica interroga na cela um homem que foi torturado por fazer milagres e ser seguido por multidão como se fosse o Cristo de volta à Terra, ao que o dignitário eclesiástico tenta provar-lhe como a instituição não precisa mais de ideias libertárias.

No ano de 2020, como sabemos, infelizmente não foi possível realizar nenhuma edição do Encontro com Espectadores, em consequência do novo coronavírus.

De volta à cronologia do site, após seis anos de uma trajetória que teve início sob o plano pessoal e culminou na rede interestadual de colaboradores – o grupo chegou a 16 pessoas –, o Teatrojornal repensou o projeto editorial e decidiu, em meados de 2016, verticalizar sua atuação na cidade de São Paulo. As etapas anteriores foram importantes para se perceber que ampliar o território implicava afastamento da verticalidade necessária a quem se dedica ao ofício. Os editores, nos víamos sobrecarregados no trabalho de lapidação corpo a corpo com quem escrevia, além das inquietudes inerentes à produção do próprio trio. Dessa forma, tornou-se essencial recolher-se nesse momento para avançar mais fortes. Reduzir a amplitude do site equivalia a um almejado e alentador aprofundamento da prática. Foi o que nos fez recuar de compor a plataforma DocumentaCena, com a qual orgulhosamente contribuímos em sua gênese ao lado da revista eletrônica Questão de Crítica, do blog Satisfeita, Yolanda? e do site Horizonte da Cena.

Evidentemente, isso não significava ignorar a produção de outros Estados ou do exterior. A prioridade territorial visou a uma consolidação de identidade. De qualquer modo, permaneceu no radar a cobertura de festivais, de mostras e de participações em atividades formativas ou reflexivas.

Este artigo abriu saudando o jornalismo. Convém ressaltar que essa profissão também sofreu mutações tectônicas. O crítico de teatro perdeu terreno no caderno cultural, consequentemente desaparece o espaço para as artes da cena. No vácuo dos titulares especializados em dança e teatro, atravessamos a revisão de papeis, de técnicas, de posturas. Conflitos de interesse, falta de transparência e relações pouco profissionais com fontes são alguns dos calcanhares de Aquiles na atuação dos profissionais da comunicação. Ontem como hoje.

Em seu nono ano, o Teatrojornal deixou o acanhamento de lado, posicionou-se enquanto veículo de comunicação e conquistou apoio do Sesc São Paulo para receber anúncios da programação cênica em sua homepage, assim como a instituição procede com diversas mídias digitais ou impressas. Súbito, o jornalista que sempre viu a bem demarcada linha que separa o departamento comercial das decisões editoriais nas redações dos jornais, acabei tratando nas duas frentes.

Talvez essa seja uma das premissas a considerar. Noções de convivência, de coabitação, tão caras à cena na contemporaneidade, são incontornáveis para quem pratica a crítica hoje na internet, sem o guarda-chuva da indústria do jornalismo, por exemplo. Isso pressupõe horizontalidade nas relações com artistas, desprezar presunções e vieses hierarquizantes sem abrir mão de incumbir-se do exercício de criticar. Não se trata de reinventar a roda. Alguns profissionais do passado praticavam essa conciliação intelectual. Importa respeitar as diferenças para que as relações de artistas e críticos não sejam intoxicadas e fustiguem fantasmas de lado a lado.

Agência Ophelia Maria Eugênia e o ator Giordano Castro conversam a propósito de ‘Apenas o fim do mundo’, espetáculo do Grupo Magiluth (PE); o ator Pedro Wagner também estava presente no encontro de abril de 2019

Três anos atrás, convidada a refletir sobre seu ofício na abertura da jornada Crítica em Movimento, no IC, a crítica, ensaísta e pesquisadora Mariangela Alves de Lima, que por quatro décadas (1971-2011) atuou como crítica teatral em O Estado de S.Paulo, argumentou sobre a gradual redução de espaço dessa atividade na chamada grande imprensa como um processo de descontinuidade histórica.

Ela creditou à geração que lhe antecedeu a criação e sedimentação de um espaço para a crítica teatral assentado sobre a ética jornalística e seus valores, entre eles rigor investigativo, agudeza de análise e clareza na expressão escrita. Ao ser inserida no seu trabalho, ainda jovem recém-formada, afinou seus instrumentos nesse território de credibilidade já então reconhecida por espectadores/leitores e criadores.

Mariangela encerrou o argumento lamentando a ruptura desse percurso cuja causa seria o desinteresse das organizações jornalísticas pela crítica, uma vez que, na sua visão, havia dentro dos jornais pessoas capacitadas para manter um espaço cultivado ao longo de décadas.

Movidos por pensamento similar, nós, críticos e editores, nos perguntamos se a tarefa agora imposta não é a de reinventar essa tradição. Nesses tempos em que a escrita migra do papel para as telas, como contribuir para a continuidade da vertente crítica jornalística, cuja vocação é atingir o chamado espectador comum, sem simplificação do argumento, mas também sem ignorar a teorização da crítica ensaística na universidade? Quais os procedimentos necessários para que essa experiência mediadora alcance o público teatral mais amplo? Como modular novos modos de interlocução entre criadores, espectadores, gestores e analistas da cena? Eram algumas das perguntas instauradas em nossas discussões – eu, Beth, Maria Eugênia e Kil Abreu, que fez parte da equipe de editores.

A Beth que conheci quando repórteres de teatro concorrentes, ela no Estadão, eu na Folha, dedicou os últimos seis anos a pensar e a editar o Teatrojornal, numa disposição incondicional. Neste início de ano e de década, ela deixa a parceria para se dedicar a projetos pessoais junto a familiares em Niterói (RJ). Permanece a amizade por meio da qual aprendi bastante acerca de ramificações e bifurcações na vida, no teatro e no jornalismo. Cobrimos muitos acontecimentos juntos e colecionamos memórias saborosas e dolorosas dessa ocupação.

Concluo o relato com a crença de que a geração de pesquisadores, jornalistas e espectadores apaixonados e instalados no ambiente da internet – que consagram parte considerável de suas existências à crítica de teatro, conforme parcialmente retratado no dossiê Biocrítica –, essa geração reúne todas as condições, no marco das linguagens e dos ideais, para levar adiante as transformações. Colocar-se à altura das expansões cênicas e dramatúrgicas que abrangem o trabalho de atores e de atrizes. Sob o ponto de vista da criatividade, a arte do teatro e suas coirmãs vivem um momento profícuo no Brasil, a despeito das condições materiais e do abandono das instâncias federais. Assim como gestores públicos e privados têm feito a diferença na travessia deste assalto à arte e à cultura, agravado pela pandemia de covid-19, acreditamos que o fazer crítico é componente indispensável ao sistema de artes, complemento essencial para que o indivíduo e a comunidade leiam as realidades objetivas e subjetivas com lentes inaugurais, à luz dos processos históricos e das poéticas que fruiu.

Impulsionado por esta escrita, descobri, décadas depois, que o patrono da biblioteca municipal de São Miguel Paulista, o escritor cearense Raimundo de Menezes (1903-1984), nome que jamais esqueci, também era jornalista e trabalhou em vários cargos, de revisor a redator-chefe. Foi ainda biógrafo, dicionarista e até delegado de polícia. Autor de Outras terras e outras gentes (1926), livro de crônicas de viagem, chegou a presidir a União Brasileira dos Escritores, a UBE,  nos anos de arbítrio e turbulência que sucederam o golpe militar de 1964. O homem das letras e da lei era considerado um sujeito de gestos calmos.

.:. Leia mais sobre o dossiê Biocrítica

Reprodução Imagem de Santos pelo artista Daniel Torres, do Grupo Carmin (RN), realizada em 2016 com caneta esferográfica; recurso lembra a técnica bico de pena que ilustra artigos em jornais

Valmir Santos (São Paulo, 1967) é jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, em 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes. Autor de livros ou capítulos no campo teatral. Colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Doutorando em artes cênicas pela Universidade de São Paulo, onde cursou mestrado na mesma área.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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