Artigo
14.12.2021 | por Valmir Santos
Foto de capa: Frame de vídeo
Uma das artérias do Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia desde a gênese do FILTE, em 2008, o encontro do Núcleo de Laboratórios Teatrais do Nordeste, o Nortea, transcorreu de modo virtual em 2021, como toda a programação artística, reflexiva e formativa do evento realizado de 22 a 28 de novembro. Nas primeiras duas tardes, cinco grupos trocaram práticas, criações e pensamentos por plataforma de videochamada aberta ao público. A pauta que principiou orientada pelo conceito de desmontagem resultou contextualizada a partir da constatação, praticamente consensual, de que os vídeos apresentados ficam aquém da exposição rememorativa de uma obra, suas prospecções, tentativas, acasos, descobertas, enfim, e constituem criações autônomas na imbricação das linguagens da cena e do vídeo, a maioria gerada no período da pandemia.
No enunciado acerca do Nortea, o site do festival informava que a cada tarde seriam exibidas “desmontagens”, em aspas que se revelaram providenciais. De fato, os grupos Clowns de Shakespeare (RN), Teatro Popular de Ilhéus (BA), Teatro Máquina (CE) e Carmin (RN) – além da quinta via representada pelo Magiluth (PE) por meio da escuta ativa e do revezamento na mediação – compartilharam trabalhos que revisitaram espetáculos dos respectivos repertórios, contudo adotaram estratégias diversas das expectativas quanto ao procedimento da desmontagem pelos trabalhadores do teatro que trazem à tona seus mecanismos e referenciais poéticos, conforme observa a pesquisadora Ileana Diéguez, professora no Departamento de Humanidades de la Universidad Autónoma Metropolitana, no México, e uma das vozes expoentes no assunto.
Descarnar para chegar ao osso e, na cozinha, desossar para chegar à carne. Em que lugar poderia estar a desmontagem teatral entre o osso e a carne?
Fernando Yamamoto, Grupo Clowns de Shakespeare
Antes de elencar as proposições nordestinas, uma definição se faz oportuna, como Diégues anotou no artigo Desmontagem cênica, publicado na revista Rascunhos – Caminhos da Pesquisa em Artes Cênicas, da Universidade Federal de Uberlândia, em 2014. “Quando aqueles que lidam com a criação optam por compartilhar seus processos de trabalho, percorrem caminhos arriscados, em uma direção muito diferente da montagem ou representação de um texto prévio. O que se decide compartilhar ou mostrar não é uma técnica ou regra de como fazer o ‘trabalho de mesa’ para interpretar o texto, ou como dividir os papeis entre os atores e marcar um roteiro cênico. A força destas demonstrações está nos processos de investigação, acumulação e criação dos atores, em diálogo com seus colaboradores e diretores. São esses caminhos de busca, experimentação, resultados, dúvidas, reflexões, onde se integram saberes culturais, aprendizagens espirituais e intelectuais, riscos corporais e confrontações humanas, que o grupo de artistas decide compartilhar de maneira ampla ou restrita”.
Essas “performances pedagógicas” que intentam “tornar visíveis os percursos, dispositivos e a tessitura da cena”, sempre segundo a pesquisadora, têm lastro na sessão de trabalho que o diretor e dramaturgo cubano Victor Varela e seu grupo, o Teatro Obstáculo, desenvolveram durante a X Oficina da Escola Internacional de Teatro da América Latina e Caribe, a histórica EITALC, em 1993, em Havana. Dois anos depois, o grupo peruano Yuyachkani abrigou a XVI Oficina da EITALC em Lima e a divulgou como Desmontagem: Encontro com Yuyachkani.
“Assim, o procedimento de desmontar se abria para a experiência no tempo e em todo o universo de trabalho do grupo teatral. A palavra ‘desmontagem’ tem sido o repositório de múltiplas ressonâncias, teóricas e práticas. Além de ter como antecedente as demonstrações de trabalho realizadas por atores e diretores latino-americanos, bem como pelos integrantes do Odin Teatret [Dinamarca] desde os anos oitenta, carrega também uma série de implicações teóricas desenvolvidas no entorno do teatro, especificamente na filosofia e nas teorias literárias”, explica Diégues, traduzida por José Raphael Brito dos Santos e Gilberto dos Santos Martins. No contexto paulista, as demonstrações de trabalho por atuantes foram bastante difundidas pelo Lume Teatro, sediado há 36 anos em Campinas.
Feita a introdução, fica patente que os vídeos da mais recente edição do Nortea trilharam caminhos outros, ainda que por vezes tangenciassem a desmontagem.
Seguindo o ciclo etário dos coletivos reunidos no painel, o Clowns de Shakespeare, formado há 28 anos, agregou aos experimentos pandêmicos a sua linha de pesquisa em torno do imaginário e da geopolítica latino-americana, vide visitas a textos do argentino-equatoriano Arístides Vargas, do uruguaio Eduardo Galeano e do venezuelano Gustavo Ott, nos últimos sete anos; a coprodução da obra online As teias abertas da América Latina, com a trupe colombiana Teatro del Embuste, estreada neste dezembro; e o experimento para a internet L.A.A.A.T.I.N.A. – Legião de aventureires, aventureiras e aventureiros tenazes e incansáveis pelas narrativas ao avesso, em junho passado.
Na programação do Nortea, o grupo de Natal exibiu o documentário de curta-metragem A casa inteira é um palco: o processo de construção de CLÃ_DESTIN@ (2021), registro, como o título sugere, dos bastidores das temporadas de CLÃ_DESTIN@: uma viagem cênico-cibernética (2020), primeira incursão do Clowns em formato virtual em que lançou mão de diferentes plataformas como os aplicativos WhatsApp e Instagram. Atrizes e atores acostumados a fabular em cima de tablados confessam hesitações e excitações diante da tarefa de interagir entretelas – admirável mundo novo explorado com agudeza de espírito.
O diretor Fernando Yamamoto, aqui dividindo a condução do vídeo com Rafael Telles, relata que foi a primeira vez que exerceu sua função sem poder assistir diretamente às cenas que ajudou a conceber. Durante as transmissões, ele cumpria papel similar ao de operador na ilha de edição em emissora de TV, contornando imprevistos em tempo real, a exemplo da queda de sinal de internet ou da incompatibilidade de aplicativos entre atuantes e viajantes, como são chamadas as pessoas a quem a ação era destinada, uma por vez. Tempos depois, cada artista adaptou o roteiro para acolher dois viajantes por sessão, complexificando ou sofisticando a dinâmica de lado a lado.
Trechos do experimento cênico-cibernético e a trilha sonora de determinadas passagens, com destaque para ritmos caribenhos, reafirmam a identidade audiovisual do projeto e situam, sobretudo para quem não acompanhou CLÃ_DESTIN@, como foi que a equipe se jogou sem rede nesse desafio em pleno quarto mês de quarentena.
Na fase pré-Covid-19, o grupo vinha de percorrer Colômbia, Equador, Peru e outros estados brasileiros em busca da realimentação do teatro com as festas populares. Não é difícil inferir que tal expedição lhe permitiu capturar sínteses socioculturais sincrônicas aos países da América Latina sob a devida carga política no que diz respeito às realidades do continente. Etapa também documentada em vídeo, no média-metragem Boi galado vagamundo: ninguém nos tira a festa! (2021).
Ao contrário do Clowns de Shakespeare, que revisitou uma obra de natureza online, o grupo Teatro Popular de Ilhéus, 26 anos, resgatou a história da comédia Teodorico majestade – As últimas horas de um prefeito (2006), escrita e dirigida por Romualdo Lisboa e objeto de documentário de curta-metragem de mesmo nome, de 2014, sob roteiro e direção de Elson Rosário. O espetáculo surgiu na esteira das denúncias de corrupção praticada na gestão do prefeito Valderico Reis (sem partido). A dramaturgia, estruturada em cordel, satiriza o caso verídico que, no ano seguinte à estreia, culminou em aprovação de impeachment do governante pela Câmara de Vereadores, por 12 votos a um.
“Até onde a gente pode interferir nessa relação da comunidade com a questão política? O teatro pode interferir até onde?”, indaga a atriz e produtora Tânia Barbosa. Os depoimentos e imagens de arquivos da população mobilizada em frente à câmara de Ilhéus e a longevidade da montagem que alcançou a tragédia da pandemia com a não menos sagaz transposição para o ambiente virtual, rebatizada Teodorico majestade – A última live de um prefeito (2020), dão notícias de que a arte, sozinha, evidentemente não transforma a vida como ela é, mas, quando sintoniza o espírito de sua época, é capaz, sim, de ser premonitória. No caso, o Teatro Popular de Ilhéus “fez tumulto e o escarcéu”, como entoa no vídeo o narrador cordelista e violeiro, a respeito do que se passou na fictícia Ilha Bela.
Para traçar um paralelo, o teatro como uma atividade de movimento político, ciente de suas limitações, é justamente assim assumido pelo diretor chileno Guillermo Calderón. Na Ocupação Mirada, festival organizado pelo Sesc São Paulo no mês passado, ele exibiu o documentário de curta-metragem La segunda vida de un dragón (2020), que remete à montagem teatral Dragón (2019), de autoria do encenador, confrontada ao colapso do confinamento social que suspendeu o processo revolucionário das manifestações populares no Chile, deflagrado pelo aumento da passagem de metrô em outubro de 2019. As reivindicações mexeram nas bases da sociedade e conspiraram para a elaboração da nova Constituição em curso, mais diversa e inclusiva em suas representatividades. Além disso, o cenário atual é de incertezas diante das eleições presidências do próximo domingo, disputadas por candidatos de esquerda e de ultradireita, este com tração nas sombras do ditador general Augusto Pinochet (1915-2006).
Durante uma mesa de conversa com artistas brasileiros, Calderón lembrou que a peça Mateluna (2017) foi escrita e encenada para tirar da prisão o ativista Jorge Mateluna, que chegou a colaborar na criação do espetáculo Escuela (2013) e acabou sentenciado há 16 anos de prisão por assalto a banco sob falsos testemunhos, tese exposta em cena – Mateluna segue detido. “Decidimos fazer uma obra para livrá-lo. Foi muito traumático pra gente, um teatro político que disparou uma campanha política, uma clara intensão de agitação e propaganda”, disse. Indignação que também ecoa no vídeo La segunda vida de un dragón, que superpõe cenas externas gravadas para a obra teatral, a repressão das forças de segurança do Estado e, inclusive, recorta o contexto brasileiro com o assassinato da deputada estadual Marielle Franco (Psol) e do motorista Anderson Gomes, em 2018, sob a ascensão da extrema-direita com Bolsonaro na Presidência. “No Chile, a repressão política se transformou em emergência sanitária”, diz o diretor. Dragón, a peça, é uma comédia em que um grupo de artistas se encontra num restaurante do centro de Santiago para discutir sua próxima instalação. Transversalmente, trata da relação da arte com a sociedade, necessariamente instável. “Dragón ficou para trás, a realidade da revolução foi mais rápida que o teatro. A única coisa que podíamos fazer era sair às ruas e gravar os protestos com nossos celulares”, afirma Calderón, referindo-se ao conteúdo atualizado no documentário.
Ou seja, como se deu com pares brasileiros e brasileiras, em distintas gradações, o chileno não produziu uma desmontagem, antes, foi catapultado pelos fatos e instado a elaborar um filme que indicasse uma ruptura com a própria obra cênica de que partiu, diante dos tempos disruptivos que ele e atores presenciaram nas ruas e praças.
“A peça Dragón mirava o futuro, mas o futuro chegou e, de alguma forma, ele é pior e mais cruel do que a obra prometia. Ela fica no passado, imediatamente, porque a realidade a supera. A realidade foi tão violenta e tão crua que o futuro se transforma em passado”, diz Calderón. “Ainda assim, o processo político que se passa no Chile é profundamente inspirador. Sem dúvida, não sabemos mais como fazer teatro. Durante muito tempo fizemos teatro de advertência, a fim de expressar a dor e o perigo que a sociedade não queria reconhecer. Agora, a violência superou toda a dor que imaginamos. Por isso nos custa muito voltar ao teatro, nos encerrar numa sala de ensaios, alheios à crueldade que está se passando no mundo e em nosso país. Temos de reinventar o teatro. Daqui para o futuro, todos os trabalhos serão um fracasso, mas espero que sejam um fracasso honesto e interessante de se ver. E cada vez que nos digam que o teatro político não serve para nada, insistiremos de que, sim, serve, exceto no caso de Jorge Mateluna.” Assertiva com a qual o Teatro Popular de Ilhéus provavelmente assina embaixo.
O Teatro Máquina, 18 anos de prática em Fortaleza, revolveu a montagem de Nossos mortos (2018), sua fricção do mito grego de Antígona, por Sófocles, mais de dois séculos e meio atrás, com os massacres da Guerra de Canudos (1896-1897), no interior da Bahia, e do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto (1937), no Crato, cidade da região do Cariri cearense – episódio em que a comunidade religiosa desafiou o poder do latifúndio e propôs uma sociedade mais justa e humanitária, sendo acusada de comunista. O grupo chegou ao sumo de um curta-metragem a que deu o nome de Nossos mortos: arquivos desarquivados (2020), criação conjunta de seis integrantes, incluindo a diretora Fran Teixeira. Há uma fusão de temporalidades e espacialidades que extrapola a mera evocação de passagens da montagem original. É como se o exercício de edição e colagem dessas memórias, a partir de gravações antigas ou recentes, desaguasse em narrativa outra, própria dos códigos videográficos. São notáveis a superposição de imagens e sonoridades que correspondem ao lapidado trabalho de voz do espetáculo presencial pelas atrizes Ana Luiza Rios e Loreta Dialla, embarcadas na recriação.
Num dos excertos, ouve-se: “A tragédia carrega possibilidade de dar apresentação a toda uma história de horrores que ainda teremos de enfrentar”. Nessa tarefa de escavar e espelhar a arqueologia, o ciclo de eterno retorno transparece como um fantasma a nos alertar quanto ao estado de horror representado pelo atual grupo político que desgoverna o país sob os dogmas da autocracia e da perversão.
Os limiares do que é real ou ficção estão presentes em outro documentário, A frasqueira de Jacy (2020), direção de Pedro Fiuza, versão online de Jacy (2013), do também potiguar Grupo Carmin, 14 anos, atuada por Quitéria Kelly e Henrique Fontes, este conciliando a direção. Tudo começa com um dado factual: a caixa foi encontrada por Fontes junto ao lixo disposto na calçada de uma casa, trazendo em seu interior documentos relativos a uma nonagenária, filha de donos de engenhos. Objeto e conteúdo foram ressignificados numa trama que vaga pela invenção e pelos dados concretos sobre a vida pregressa dessa mulher a quem o grupo dá como conhecedor de sua identidade, mas evita revelá-la, preferindo mensurá-la a partir de outros mundos e jeitos possíveis de existir.
A rigor, a experiência de estar diante de um quebra-cabeça demanda os mesmos níveis de articulação de quem frui com prazer e instigação em ambos suportes, tela ou palco. As atuações mantêm o caráter expositivo, o vínculo direto de quem equilibra contrarregragem e o sem-número de projeções, recurso que na adaptação é otimizado pelas características do meio digital. Cada um em seu território, Kelly e Fontes contracenam com domínio espacial da divisão cenográfica que os colocam ao lado das respectivas estantes e abajures, capitalizando as perspectivas e escalas sugeridas pela narrativa que desbasta o pano de fundo dos poderes político e econômico locais e busca valorizar singularidades outras da personagem-título, gesto que pode ser atribuído ao manto do luto que encobriu boa parte do planeta por causa da pandemia de Covid-19. “A gente estava precisando falar de gente”, resumiu Quitéria Kelly, no bate-papo após a exibição. Sutileza configurada na discreta participação da mãe da atriz, como a saudar a maioria das vítimas idosas mortas nos últimos 21 meses. Condolência que, sabiamente, não ofusca o estado solar no modo que a dupla de atores e a encenação recontam essa história.
Particularmente, a cena que celebra “o teatro de verdade”, emulado através da cortininha que emoldura o close no rosto da atuante, além de pontuar a diversidade de gêneros da arte de representar e de performar, corresponde a uma boa lembrança do antes em contraste com o doravante. No dia da participação na live do Nortea, Kelly e o ator Matteus Cardoso disseram que o Carmin recém havia voltado aos velhos tempos, com Jacy , o espetáculo, abrindo presencialmente o Festival de Teatro da Amazônia Mato-grossense em Alta Floresta (MT), no início de novembro.
Coube ao moderador da conversa no primeiro dia do Nortea, o ator Giordano Castro, cofundador do Magiluth, uma história de 17 anos no Recife – aliás, um dos primeiros coletivos a propor um experimento sensorial em confinamento, Tudo o que coube numa VHS (2020) –, abrir dissidência quanto ao procedimento da desmontagem. “Geralmente não gosto de desmontagem, prefiro ser arrebatado pela experiência da ficção”, disse, exemplificando o trabalho do Carmin.
Em sua participação no debate, por meio do chat ou do vídeo, a artista e pesquisadora Andrezza Alves comentou que a desmontagem prevê todo um arcabouço, “é uma ampliação da linguagem artística”, pressupõe “tensionar questões, se colocar no lugar de decompor e sedimentar as estruturas”. Tópicos que não viu contemplados no vídeo do Carmin. Ao que Kelly assentiu adiante: “A frasqueira de Jacy é menos uma desmontagem do que a própria peça”, comparou. Sua colega do Teatro Máquina acrescentou: “Não é desmontagem, é outra obra, tem a dimensão poética, está dentro do teatro documento, desconstrução mais que desmontagem”, disse Fran Teixeira.
O artista e pesquisador Gyl Giffony declarou no chat: “Fico pensando no aspecto pedagógico da desmontagem. E no trato com o documento e o ‘documental’, que nem sempre caracteriza uma desmontagem por si”. O ator, diretor, cenógrafo e pesquisador Marcondes Lima reconheceu que o assunto “às vezes é osso”, ao raciocinar em voz e imagem: “Penso que a desmontagem se presta muito a isso, vai descarnando. É como pensar o ovo dentro da galinha, não deixa de ser galinha e nem de ser ovo. É só um modo de olhar para isso a partir das intenções, dos princípios intencionais. Óbvio que alguém de fora poderá ver para além disso. Nas desmontagens, acho antológico o aspecto memorial. A montagem pode não carregar o ímpeto memorialista, mas a desmontagem, sim, sempre parte de um ponto de origem ao qual você retorna – a memória retorna. O jogo com a memória é muito interessante para espectadores que viram o espetáculo ou, de outro lado, para despertar aqueles que não viram. No teatro, o caráter pedagógico está posto, e a questão da memória também. É um brincar com isso, ofertar aos espectadores uma intimidade a ser exposta sobre aquilo que foi”.
Fernando Yamamoto roeu a deixa: “Descarnar para chegar ao osso e, na cozinha, desossar para chegar à carne. Em que lugar poderia estar a desmontagem teatral entre o osso e a carne?”, filosofou. Por falar em ossos, recordou-se do monólogo Adiós Ayacucho (1990), produção do Grupo Cultural Yuyachkani com atuação de Augusto Casafranca. Na adaptação da novela homônima de Julio Ortega, sob dramaturgia e direção de Miguel Rubio Zapata, o protagonista Alfónso Cánepa, um campesino assassinado durante a guerra civil peruana (1980-2000), faz o trajeto desde a cidade-título, no interior, até Lima, com o intuito de recompor sua ossada. Para tanto, pede ao presidente da República para que o ajude a recuperar as partes perdidas de seu corpo que, segundo ele, seus perpetradores levaram para a capital.
Durante o festival Mayo Teatral em Havana, em 2000, a atriz e diretora inglesa Julia Varley, do grupo dinamarquês Odin Teatret, ocupou uma das três cadeiras na mesa de um café para ouvir Casafranca acerca de Adiós Ayacucho. Na mesma mesa, estava o diretor da obra, Zapata, convidado a pouco intervir na conversa que priorizou a voz do protagonista e aprofundou questões sobre a demonstração de trabalho ou desmontagem do espetáculo. Oito anos depois, Zapata transcreveu esse diálogo/escuta em capítulo de seu livro El cuerpo ausente (performance e política), de 2008, a fim de compartilhar outras razões determinantes nos processos criativos dos atores. “Disso se fala pouco, quem sabe porque tem a ver com o íntimo, com o precário, com a dificuldade antes que com a certeza. Não são as razões transcendentes, mas sim as pequenas motivações, as sombras que parecem fazer parte da difícil geografia por onde passa o caminho de um ator”, escreveu o diretor. “Mas até onde é possível racionalizar o resultado de um trabalho? Sempre me pareceu insuficiente, sempre me deu a sensação de que se incorre na simplificação, de que o fundamental está esquecido, e creio que o que logramos são somente aproximações. Sem dúvida, esta conversa sobre algo que se apresenta como demasiado complicado parece ter a seu lado exatamente a possibilidade de seu contrário”.
.:. Escrito no contexto da prática da crítica no 13º Festival Latino-Americano de Teatro da Bahia, o FILTE. O autor foi contratado pela organização.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.