6.6.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, terça-feira, 06 de junho de 2006
TEATRO
Grupo teatral Frente 3 de Fevereiro realiza intervenção em passeata alemã contra neonazistas
VALMIR SANTOS
Enviado especial a Berlim
Em sua passagem por Berlim, no final de semana, o coletivo Frente 3 de Fevereiro, grupo teatral de São Paulo, trabalhou com uma questão incômoda para o país-sede da Copa do Mundo -o racismo. O grupo protagonizou uma ação direta durante passeata contra ataques neonazistas a imigrantes em certos bairros ou cidades, as chamadas “go no areas”. E, horas depois, incorporou imagens do ato no próprio espetáculo-manifesto “Futebol”, escalado para o festival de teatro Brasil em Cena. Na manhã de sábado, cerca de 50 pessoas partiram do prédio do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha em direção ao Portão de Brandenburgo, na região central da cidade. Sob garoa, protestavam contra o espancamento de um alemão de origem etíope numa cidade vizinha a Berlim. Aliado a coletivos locais, como Kanak Attack e Togo Action, a Frente 3 de Fevereiro levou uma bandeira de 20 m x 15 m, carregada por várias mãos. No tecido preto, que cobria o asfalto de uma calçada a outra, lia-se em tintas brancas: “Know go area”, uma corruptela em inglês para a zona em que os imigrantes procuram não ir por causa da violência. Ao intervir em ruas, praças e diante das lentes de uma emissora de TV, a bandeira agigantou a passeata. “Não faz sentido trazer o espetáculo sem discutir as relações raciais no mundo contemporâneo”, diz o DJ Eugênio Lima, 38, uma das 20 vozes da Frente, que tem médicos, advogados, grafiteiros, sociólogos, artistas plásticos etc. A bola não rola em “Futebol”, para surpresa, talvez, de alguns espectadores alemães que vestiam a camisa brasileira na noite de estréia em um dos três endereços do complexo teatral Hebbel am Ufer (HAU). Apoiado em vídeo e música ao vivo, traz a fala condutora da atriz Roberta Estrela d’Alva, texto baseado em conversa com o cineasta Noel Carvalho (“Dogma Feijoada”).
Origens
O coletivo paulista nasceu como uma forma de mobilização após o assassinato do dentista negro Flávio Ferreira Sant’Ana, em fevereiro de 2004, por policiais militares do Estado. As primeiras ações da Frente 3 de Fevereiro aconteceram em estádios de futebol, na seqüência do episódio ocorrido com o jogador Grafite, ofendido de maneira racista pelo argentino Desábato. Em três jogos televisionados, as torcidas ajudaram a abrir uma bandeira com precisão coreográfica.
28.5.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006
TEATRO
Quatro espetáculos, como “Os Meninos e as Pedras” e “As Turca”, trazem personagens oriundos do Oriente Médio
Três dos quatro espetáculos paulistanos com essa temática têm sessão hoje; preço do ingresso varia de R$ 14 a R$ 40
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Sempre complexas, questões relativas ao Oriente Médio ganham abordagem, de formas direta e indireta, em quatro espetáculos na temporada teatral da cidade. Três deles tem apresentação hoje: “Os Meninos e as Pedras”, no Viga Espaço Cênico; “As Turca”, no teatro Bibi Ferreira; e “Emma Goldman: Amor, Anarquia e Outros Casos”, no Espaço dos Satyros 1. Já “Feliz Aniversário” tem sessões às quartas e quintas-feiras, no Teatro Folha.
Num lugar imaginário, o “quintal” da casa deles, Yonatham, um menino judeu, e Fátima, uma menina árabe, protagonizam um encontro que traz à tona os conflitos existentes entre seus povos. Mais que isso, a possibilidade de convivência, de diálogo.
“Os Meninos e a Pedra” foi escrito por Antônio Rogério Toscano em 2002. A peça é definida pelo próprio autor como “dramaturgia para jovens”.
A encenação de Juliana Monteiro (assistente de Newton Moreno em “Assombrações do Recife Velho”) busca contrapor um tema polêmico às brincadeiras infantis que sustentam o jogo cênico dos atores. “Mas a gente busca fugir da caricatura da criança”, diz o ator Luiz Gustavo Jahjah, 29. Sua família tem ascendência árabe, mas ele interpreta o menino judeu, papel que também é assumido em cena por seu colega Judson Cabral. Já a atriz Cecília Schucman, de ascendência judia, faz a menina árabe junto com Ligia Yamaguti. Todos integram o Núcleo Entrelinhas de Teatro, formado por aprendizes da Escola Livre de Teatro de Santo André.
Em “As Turca”, Nura, Dulce e Vitória são irmãs. Na peça, a também atriz Andréa Bassitt, bisneta de libaneses, expõe o drama de uma família árabe e cristã às voltas com o fim da fartura de outrora, quando seus familiares chegaram ao Brasil na corrente imigratória do início do século 20.
Apesar da crise de fundo, às vezes em primeiro plano, “As Turca” escora-se na veia comediante de atrizes como Cláudia Mello (a irmã mais velha) e Juçara Morais (a do meio). Bassitt interpreta a caçula. Toda a ação se passa dentro de uma cozinha, onde as personagens põem a mão na massa para assar esfihas.
Numa das passagens do espetáculo dirigido por Regina Galdino, chega a notícia, via telejornal, de um atentado à bomba numa universidade norte-americana em Beirute. O episódio atingirá diretamente o coração daquela família.
Judeus na Lituânia
Atentado, fabricação de bomba, também é por aí que mais se aproxima a relação com o Oriente Médio contemporâneo em “Emma Goldman -Amor, Anarquia e Outros Casos”, solo interpretado por Agnes Zuliani e dirigido por Rodrigo Garcia.
O texto da americana Jessica Litwak faz um panorama da judia da Lituânia que imigrou para os EUA em 1885 e lá exerceu a maior parte de suas atividades políticas até ser deportada em 1919. Segundo Zuliani, Goldman foi precursora da esquerda de 1968 em sua defesa da liberdade e em seu experimentalismo de comportamento. “Ela foi uma grande divulgadora das artes em suas palestras nos EUA, sendo uma das primeiras a falar, naquele país, dos grandes dramaturgos modernos, como Ibsen, Strindberg e Tchecov”, afirma a atriz, que contou com o apoio do Centro da Cultura Judaica.
Uma mulher judia também está à frente de outra peça em cartaz, o monólogo “Feliz Aniversário”, com Danielle Maia.
27.5.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, sábado, 27 de maio de 2006
TEATRO
Com clássico shakespeariano, Jô Soares dirige pela segunda vez em três anos
Elenco reúne expoentes do humor, como Ilana Kaplan, veteranos como Glória Menezes e atores do “circuito alternativo”
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
No terceiro Shakespeare em 30 anos de carreira, somada a fase amadora (já atravessou “A Tempestade” e “Hamlet””), Marco Ricca vive o dissimulado e traiçoeiro Ricardo 3º, personagem-título da peça que ele desejava protagonizar e produzir desde os anos 90. O sonho é materializado no espetáculo que estréia hoje para convidados, no teatro Faap, e cumpre temporada a partir de amanhã. Ricca surge ao lado de 14 atores, um elenco dos mais ecléticos já reunido na cidade. Estão lá comediantes talentosos como Denise Fraga, Ary França e Ilana Kaplan, a contracenar com a experiência de Glória Menezes e Roney Facchini, mesclados a intérpretes projetados na cena mais experimental, como Edu Guimarães, Laerte Mello, Marcos Suchara, Maurício Marques e Maria Manoella. Todos sob a batuta de Jô Soares, que engata o segundo projeto para teatro em menos de três anos (o primeiro foi “FrankensteinS”). O que sugere mais entusiasmo para com a arte que abraçou com mais força nos anos 60 e 70 (leia ao lado). Soares também assina tradução e adaptação da sangrenta história do “javali” que encurrala suas “ovelhas” sem defesa, para usar uma imagem do texto, mas depois acaba ele mesmo enfrentando o resultado do lance de dados que jogou. Essa quintessência do teatro, o jogo, encontra terreno fértil nessa peça do início da carreira de Shakespeare (1593), inspirada nos 30 anos da guerra dos clãs York e Lancaster. Ricca, 43, incorpora as múltiplas faces do conspirador da Coroa, Ricardo 3º. “Tem horas que parece que são dois espetáculos: um faço não para, mas com a platéia, e outro acontece internamente, na maneira de contar essa história”, diz. Estudiosos da obra costumam comparar o encantador e cruel conspirador da Coroa a um mestre-de-cerimônias, em meio ao castelo e campos de batalha. “Não é exatamente o que a gente faz, mas essa leitura é possível, como quem convida à carnificina oficial”, explica o protagonista.
26.5.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, sexta-feira, 26 de maio de 2006
TEATRO
“Centro Nervoso” estréia hoje, com referências às ondas recentes de violência
Texto é construído sobre 13 cenas do cotidiano e marca primeira experiência do autor na direção teatral; elenco contribuiu
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Talhado em criações colaborativas com grupos como Teatro da Vertigem (“Apocalipse 1,11”, 2000) e Cia. Livre (“Arena Conta Danton”, 2005), o escritor e dramaturgo Fernando Bonassi chega à direção teatral. “Centro Nervoso” estréia hoje no Sesc Anchieta. São 13 cenas do cotidiano, resultado de contos ou artigos do colunista da Folha. O autor exprime dores e urgências do mundo real em paralelo ao exercício de musicalidade sobre as palavras. “Os textos têm referências históricas aos episódios dos últimos dez dias em São Paulo. Quem lê ao menos um jornal por ano já sabia o que ia acontecer naquela segunda-feira [15/ 5, dia do toque de recolher do PCC]. Estamos a um passo da barbárie. Esse será o modelo para o Brasil nos próximos anos, o estado de guerra civil, se não houver distribuição de renda”, diz Bonassi, 43. A dor presente na escrita, por vezes trágica, é ampliada para a chave do humor em cena, resultado que o autor diz surpreendê-lo e revela a contribuição direta do elenco, que “levou as histórias para casa” e as recriou. O quarteto Eucir de Souza, Malu Bierrenbach, Pascoal da Conceição e Thereza Piffer passeia por personagens dos mais manifestos aos anônimos, como a mulher que matou o marido aos poucos, envenenando o feijão dele, ou o duplo de Pelé que foi jogado às traças, ofuscado pelo sucesso do rei do futebol. O desafio do Bonassi diretor (palavra sobre a qual não bota muita fé) é traduzir as crônicas do cotidiano para um palco a ser preenchido ou esvaziado.
Também são seus aliados Lucienne Gudes (dramaturgismo), Vivien Buckup (direção corporal), Alessandra Domingues (desenho de luz), Marcelo Pellegrini (música original) e Daniela Garcia (direção de arte, cenografia e figurinos), entre outros.
25.5.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, quinta-feira, 25 de maio de 2006
TEATRO
Ator e poeta diz transgredir forma e conteúdo em sua nova peça, “Dinheiro Grátis”, que estréia em São Paulo no sábado
Depois de levar choques estimulados pela platéia em “Regurgitofagia”, Michel Melamed surge numa arena cercada de arame farpado
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Sentado no saguão de um hotel na região da av. Paulista, Michel Melamed “vende” seu negócio ao repórter, não à boca pequena, como o fazem os homens engravatados nas mesas vizinhas. O poeta e ator carioca fala, gesticula e fuma o seu novo espetáculo, “Dinheiro Grátis”, ruído paradoxal que reverbera em São Paulo a partir de sábado, no Tucarena, após temporada no Rio, onde foi recebido com algumas críticas negativas. A cidade já o conhece de “Regurgitofagia”, quando deitava o verbo ligado a dois cabos que, diz, descarregavam choques elétricos ao menor espirro da platéia. O sucesso o levou à França, EUA e, em agosto, à Alemanha. Melamed, 29, também escreveu e co-dirige “Dinheiro Grátis” com Alessandra Colasanti. O espaço cênico é uma arena cercada por arame farpado, imagem que lembra o território proibitivo de um campo de concentração. O ator quer furar esse bloqueio para se comunicar com o público espontânea e dialeticamente. Fala numa terceira via para a cena, o protagonismo que vai daqui, espectador e “co-autor”, para lá, palco, e não apenas o contrário. A seguir, trechos da conversa em que o artista comenta a sua “Trilogia Brasileira”, ainda sem patrocínio, a ser completada com “Homemúsica”. Ele tem a convicção de que seu teatro se aproxima do rock’n’roll pela transgressão na forma e no conteúdo. Deve ter guitarra, mas não uma banda.
DO NOME – É “Dinheiro Grátis” porque a gente está vivendo um momento em que o valor homogeneizador e único é esse, o dinheiro. Para qualquer classe social, seja no campo, na cidade, no primeiro mundo, no subdesenvolvimento, dinheiro é um valor supremo. E não é. Quer dizer, pode vir a ser, para quem quiser optar por isso. O problema é que a grande maioria não opta por isso, mas está entrando na barca. E tem essa frase na peça: “São 6 bilhões de projetos que têm que ser afirmados”. É a humanidade. Não tem mais Che Guevara, não tem mais sebastianismo, não virá um salvador. Aparelhe-se para que você esteja pronto para exercer sua diferença e sua criatividade.”
DA POESIA – A poesia é o principal. É a formação de onde venho, é meu projeto, é minha ambição no sentido mais dúbio, porque é uma pretensa humildade, mas ao mesmo tempo uma afirmação de que é isso mesmo. Numa das cartas de [Antonin] Artaud, quando ele estava internado, ele falava: “Se escrevo poemas não é para publicá-los ou recitá-los, mas para vivê-los”. Quer dizer, eu me relaciono com outras linguagens, acho que elas têm especificidades, mas tudo emana da página em branco, da solidão.
DO ARAME – Tem duas coisas. Uma, a provocação e profanação do espaço. Há um diálogo com “Regurgitofagia”, que era o contrário, o espectador do seu lugar interferia diretamente na minha pele com a descarga elétrica. E a outra coisa é o fato de que existe um impeditivo. Para a gente ficar junto aqui, nesta noite, o arame farpado será um impeditivo? É a visualização da incomunicabilidade a ser suplantada pela afirmação, sim, da comunicação. Muitas vezes a construção da cena é dialética, um texto aponta para uma direção enquanto a ação aponta para outra, e a idéia de síntese é do espectador.
DA CORRUPÇÃO – Dinheiro na cueca, mensalão, acho tudo isso podre. Mas acho tão perigoso quanto, hoje, só se bater nessa tecla. Parece que o PT inventou a corrupção no Brasil. A corrupção é disseminada. Violação do painel do Senado, quanto tempo tem isso? Anões do Orçamento, as ambulâncias. Temos de tomar cuidado. A corrupção não é partidária e não é de agora. Todo dia tem uma denúncia em algum lugar do país.
19.5.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, sexta-feira, 19 de maio de 2006
TEATRO
Roteiro de Luiz Antônio Martinez Corrêa é inspirado em opereta
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Em duas apresentações gratuitas que fez no Sesi Sorocaba, no início da semana, Paulo Betti, 53, teve uma prova do potencial do espetáculo “A Canção Brasileira”, que estreou no Rio em 2005 e chega para curta temporada paulistana no Sesc Santana.
“É uma peça absolutamente popular, um delírio”, diz o ator, que assina seu primeiro musical.
A exultação tem a ver com o mote, o rapto de uma personagem carismática, a recém-nascida Canção Brasileira, por um trio de chorões: Violão, Cavaquinho e Flauta. Eles a levam para o morro e propõem um divertido inventário das suas influências, de modo a evitar a contaminação estrangeira, como o assédio da Valsa e do Fado.
No entanto, não tem jeito: a Canção desce o asfalto e se enamora do Tango. O texto de teatro de revista de Luis Iglesias e Miguel Santos estreou em 1933 e trazia, no elenco, Vicente Celestino e Gilda de Abreu, artistas que terminaram se casando em cena.
Na linha dos sucessos
A montagem que vem à luz agora é a versão do roteiro de Luiz Antônio Martinez Corrêa (1950-1987), diretor assassinado a facadas num apartamento do Rio. Ele vinha de sucessos com o gênero, como “Theatro Musical Brazileiro – Parte 1 (1860/1914)”, de 1985, e “Theatro Musical Brazileiro – Parte 2 (1914/1945)”, de 1986, sempre em parceria com Marshall Netherland.
A dupla já tinha planos para a montagem da opereta “A Canção Brasileira” (a opereta é um tipo de teatro musicado, leve, que entrelaça diálogos).
O roteiro deixado por Corrêa não estava completo, faltavam as partituras das músicas compostas por Henrique Vogeler (1888-1964), alemão radicado no Brasil. O processo de resgate foi parcimonioso. Primeiro, a irmã do diretor, Maria Helena Martinez, encontrou o roteiro. Em 1994, ela foi procurada por French Gomes da Costa, antigo freqüentador do teatro musicado, que assistiu à primeira montagem de 1933 e tinha cópia da partitura original.
“Depois da morte do Luiz Antônio, eu ficava na praça Tiradentes [no Rio], à noite, conversando com as pessoas que andavam por ali sobre os musicais e o teatro brasileiro. Uma vez, comentei que não conseguia achar essas partituras. Até que French apareceu em frente à minha casa e me deu de presente todas as partituras do espetáculo. Considero isso um milagre”, afirma Maria Helena, 82, que também colaborou na adaptação -ela é irmã ainda de outro diretor teatral, Zé Celso, do Oficina.
Em cena, são três músicos e 14 atores, entre eles Édio Nunes, Wladimir Pinheiro, José Mauro Brant, Erom Cordeiro e Juliana Betti. Depois de São Paulo, o espetáculo seguirá para Santos, Campinas, Santo André, Bauru e Poços Caldas.
Pelo resgate popular, “A Canção Brasileira” faz coro com outra produção carioca em cartaz na cidade, “Otelo da Mangueira”, no Sesc Anchieta.
18.5.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, quinta-feira, 18 de maio de 2006
TEATRO
O diretor Roberto Lage e o ator Celso Frateschi buscam recorte político em “Ricardo 3º”, drama histórico do bardo
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
O diretor Roberto Lage tem predileção pelo teatro de idéias, aquele que imbrica reflexão e risco. Celso Frateschi é um contador de histórias na acepção mais elementar do ofício de ator. Depois de Dostoiévski (“Sonho de Um Homem Ridículo”, 2005), os parceiros da associação Ágora Teatro, criada em 1998 na Bela Vista, vão ao encontro da batida perfeita e universal de William Shakespeare em “Ricardo 3º”.
A montagem desse drama histórico, que estréia amanhã num Ágora reformado e ampliado, é coerente com o projeto de Lage, 59, e Frateschi, 54. Eles pertencem à geração dos anos 60 e 70. Lêem o teatro como arte engajada no entendimento deste século 21. “Ricardo 3º” interessa-os pela profundidade e radicalidade com que Shakespeare revela o homem político na origem do capitalismo.
“O momento de transição que a gente está vivendo, não especificamente brasileiro, mas mundial, lembra de alguma maneira a passagem da Idade Média para o Renascimento, o início do pensamento individualista que levou à transformação da sociedade européia”, diz Lage. “Hoje, atingimos esse ponto de exacerbação do indivíduo, de mudanças nos padrões éticos.”
Segundo o diretor, tal arquétipo não vem para contemporizar a crise política do país, por mais que as metáforas falem por si. Frateschi já trabalhava na adaptação da peça desde o final dos anos 90. A intenção é espreitar o homem ocidental de lá para cá.
O drama se passa logo após o fim da Guerra das Duas Rosas (1455-85), quando as casas de York e de Lancaster travam uma disputa sangrenta pelo trono da Inglaterra. O então duque de Glocester, Ricardo (Frateschi) salta a linha sucessória, na qual é o sétimo, com uma estratégia avassaladora: manda matar irmão, sobrinhos, casa-se com uma viúva de quem tramou a morte do marido e do sogro, enfim, faz tudo para conseguir a coroa. Não dura muito tempo no trono de sangue, até que é assassinado e faz girar a “roda da fortuna” dos vícios.
“Estou tão imerso em sangue que um crime me leva a outro crime. As lágrimas da piedade não habitam esses olhos”, diz Ricardo 3º, num dos lampejos de franqueza para com a platéia. Manco, com a mão esquerda debilitada, o personagem alinha a deformidade física à imoralidade. Expõe, por exemplo, a cara-de-pau na hora de seduzir uma viúva que enterra o marido ou apela à cumplicidade do espectador. “Eu agradeço a Deus pela minha humildade”, diz ele, com humor.
Lage quer refletir na encenação a opção estética pela menor grandeza. Busca “um teatro sem adjetivos”, essencial na dramaturgia e na interpretação. A montagem soma 14 atores, entre eles Renata Zhaneta, Plinio Soares, Patrícia Gaspar e Isabel Teixeira.
O palco reformado do Ágora (pela cenógrafa Sylvia Moreira) surge em três planos e lembra a arquitetura elisabetana dos tempos de Shakespeare. Há novas poltronas, mas o ritmo dos acontecimentos em “Ricardo 3º”, ao cabo, são de causar desconforto.
17.5.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, quarta-feira, 17 de maio de 2006
TEATRO
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Dono de movimentada bilheteria no circuito Bela Vista, o teatro Imprensa também quer experimentar a produção “off”. Abre hoje o seu Espaço Vitrine, com capacidade para 50 espectadores.
“Vamos aproveitar uma sala do teatro que funcionava como escritório e virou um espaço multiuso. Já teve exposições, oficinas e agora recebe espetáculos”, diz Cintia Abravanel, diretora-presidente do Centro Cultural Grupo Silvio Santos, que engloba o Imprensa.
Abravanel fala em acolher os espetáculos “alternativos” que ficam pouco tempo em cartaz “por falta de estrutura ou patrocínio”.
Mais: fala em fazer com que o público “prestigie a arte e participe de uma ação social” ao trocar o ingresso por um livro ou um agasalho. O centro vai subsidiar os custos dos primeiros espetáculos do espaço.
O primeiro espetáculo é “Rapsódia dos Divinos”, que vai revezar as próximas quartas-feiras, até 23/8, com os solos “A Pomba Enamorada”, interpretado por Maria Assunção, e “O Barril”, por Ângela Dip.
Dirigido e concebido por Paulo Ribeiro, “Rapsódia dos Divinos” se propõe a ser um espetáculo poético-musical construído por meio de compilações de textos literários brasileiros e portugueses. Os personagens passam pelas cantigas medievais e alcançam movimentos contemporâneos.
Na próxima quarta-feira, é a vez de “A Pomba Enamorada”, adaptação de conto homônimo de Lygia Fagundes Telles, co-dirigido por Antônio Karnewale e Maria Assunção (ela é protagonista).
É a história de uma mulher que se apaixona platonicamente por um homem com quem dançou uma única valsa na vida.
O terceiro espetáculo do projeto Vitrine Cultural é “O Barril”, em que a comediante Ângela Dip trata de pensamentos e situações narrados por uma mulher, momentos antes de ela atirar-se numa catarata a bordo de um barril. A direção é de Vivien Buckup.
São Paulo, domingo, 07 de maio de 2006
TEATRO
Galpões, sobrados e até ex-moradias estudantis abrigam companhias e interferem em processos de criação
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
O mapa dos espaços teatrais da cidade passa por mudanças significativas desde o final de 2002, quando entrou em vigor a Lei de Fomento, pela qual a prefeitura destina cerca de R$ 7 milhões anuais à pesquisa e criação de grupos.
Não se trata de aluguel comercial de auditório para temporada, mas de casas ou galpões ocupados como extensão das linguagens das respectivas equipes.
Impossível compreender o trabalho do grupo Folias D’Arte, por exemplo, sem associá-lo ao galpão transformado em morada há sete anos, em Santa Cecília.
Nessa trilha, a reportagem aponta cinco conjuntos que não tinham teto e, de uns tempos para cá, têm se destacado.
Os mais recentes a conquistar endereço são o grupo Teatro de Narradores (Bom Retiro), a Companhia Paidéia (Alto da Boa Vista), o Núcleo Bartolomeu de Teatro (Pompéia), a Companhia Balagan (Barra Funda) e a Companhia Livre (Barra Funda).
Ao lado do metrô Tiradentes, a Casa do Politécnico -que foi morada estudantil nos anos 1960 e estava desocupada até 2004- serve agora ao teatro. Convidado para uma intervenção, há dois anos, o grupo Teatro de Narradores instalou-se de vez e anunciou sua ocupação na semana passada, com o evento “Cenas de Intervenção”, que incluiu movimentos de moradia da região central e atraiu os conjuntos Teatro do Motim e o Mentecorpos do Balaio.
Segundo a atriz Bárbara Araújo, o Narradores, criado em 1998, vai ocupar os oito andares do prédio no seu próximo espetáculo, “Um Dia de Ulisses”, inspirado na “Odisséia” de Homero.
Na noite da última sexta, estava previsto um show de Renato Braz para abrir oficialmente as portas do Pátio dos Coletores de Cultura, no Alto da Boa Vista, sede da Cia. Paidéia. Os idealizadores Amauri Falseti e Aglaia Pusch falam em criar um pólo cultural na região de Santo Amaro e formar público. No local, de 400 m2, funcionava o antigo pátio dos coletores de lixo da subprefeitura. O projeto é uma parceria com a Associação Tobias e com o Sesc.
Em maior ou menor grau, todos os novos espaços prevêem atividades abertas ao público.
Um sobrado erguido no início do século 20 foi alugado pela companhia Balagan. Ali, a encenadora Maria Thaís vê uma arquitetura que traduz a idéia de polifonia que busca imprimir em seu trabalho coletivo.
“Com salas nos planos subterrâneo, médio e alto, a casa é como uma metáfora do nosso modo de pensar o teatro, no qual a produção e a construção de um espetáculo também estão no mesmo patamar da criação artística. A casa é do tamanho da gente”, diz Thaís.
É ali que está nascendo o seu novo espetáculo, “Západ”, expressão russa que designa o Ocidente. Dá continuação à pesquisa em torno da “clausura humana”.
Criada em 1997, a Balagan extrai seu nome da expressão homônima que, em russo, significa teatro popular e, em árabe, é sinônimo de confusão ou baderna.
Depois de passar 2004 em residência no Teatro de Arena, no centro, a Companhia Livre descobriu que um quintal faz bem. “Com espaço próprio, a nossa produção multiplicou, criamos textos, montamos, pesquisamos a história do próprio Arena”, diz a diretora Cibele Forjaz.
A companhia assinou contrato de dois anos (aluguel de R$ 1.400) para ocupar um galpão de 300 m2 na Barra Funda, uma antiga marcenaria. O espaço deve abrir em julho. Inicialmente, haverá mesas redondas e ensaios abertos com o que resultar da pesquisa sobre mitos de morte e renascimento, com colaboração de Newton Moreno. A estréia deve ser em 2007.
Um “centro de cultura popular urbana” é o que o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos pretende alicerçar na Pompéia, no mesmo espaço onde foi desativado recentemente o Studio das Artes. Segundo a atriz Roberta Estrela D’Alva, a idéia é fundir áreas como o vídeo, as artes plásticas e a música. Enfim, na linha da própria simbiose que o grupo promove em seus espetáculos com a estética e as idéias do hip hop.
11.5.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, quinta-feira, 11 de maio de 2006
TEATRO
Ator homenageia escola de samba e transpõe “Otelo” para o Rio dos anos 40
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
No desfile de 1994, quando a Mangueira amargou o 11º lugar no Carnaval carioca, um dos seus passistas, Gustavo Gasparani, traduziu a tragédia numa composição de sua lavra, “Primeira Estação do Samba”, de fundo obviamente triste. “Nem Beth Carvalho nem Alcione cantariam”, diz o também ator e dramaturgo, que sublimou aquele episódio num musical em que ata Shakespeare à escola sem medo de ser feliz.
“Otelo da Mangueira”, uma homenagem “poético-fantasiosa” à Estação Primeira, à cidade do Rio, à sua cultura e a seu povo, como concebe Gasparani, 39, ganha temporada paulistana a partir de amanhã, no teatro Sesc Anchieta. Aquela canção de 1994 vem à tona no encerramento.
Passista há 18 anos e um dos fundadores da Cia. dos Atores (1988), Gasparani criou projeto paralelo a seu grupo para transpor o clássico do século 17 para o Rio da década de 40.
A peça é ambientada naquela “era primitiva”, segundo o autor, em que o samba ainda não havia encontrado a cultura urbana e transitava do erudito para o popular -alguns compositores eram admirados pelo maestro Heitor Villa-Lobos, por exemplo.
No texto inspirado em Shakespeare, a guerra contra os turcos se transforma na luta para vencer o Carnaval. A batalha em Chipre, conforme o enredo, tem seu paralelo na disputa pelo samba-enredo. As armas, espadas e canhões equivalem aqui a cuícas, taróis e surdos de marcação.
“O primeiro solilóquio de Otelo, quando ele briga com Desdêmona, eu retirei inteiro e botei a poesia de Carlos Cachaça, dando-lhe o mesmo significado”, diz Gasparani -mas o lenço como “objeto do crime” está lá, intocável.
Gasparani interpreta Dirceu, o Iago do original que empurra Otelo (único nome mantido, interpretado por Marcelo Capobiango) para o inferno dos ciúmes. Quem faz Desdêmona é Susana Ribeiro, em substituição a Cláudia Ventura. O diretor convidado do espetáculo é Daniel Herz, da Cia. Atores de Laura.
No que define como mosaico mangueirense e shakespeariano, em prosa e verso, Gasparani emenda 17 sambas ao longo do espetáculo, de clássicos como “Alvorada” (Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho) a raridades como “Deus Onipotente Criador” (Cícero dos Santos).
Ao som de cinco músicos, os 13 intérpretes, alguns da comunidade de Mangueira, cantam, dançam ou atuam sobre uma estrutura cenográfica que remete aos desníveis do morro.