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Crítica

Orbitar o pranto de um país no beco

16.6.2021  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Print de tela

O estado de horror implantado pelo bolsonarismo leva artistas a se posicionaram, poeticamente, de forma ainda mais radical. Não poderia ser diferente em arte. E não faltam exemplos nas circunstâncias dos últimos 15 meses de pandemia sobrepostos à guerra cultural instalada desde a posse. Um governo incapaz de tecer uma linha sobre a morte de Nelson Sargento e outros mestres e mestras em diferentes expressões. Que desqualifica o pensamento crítico. Ataca sistematicamente a comunidade artística. Desestrutura instâncias-chave do extinto Ministério da Cultura (MinC). Cientes dessa realidade macabra, os 86 minutos do vídeo-manifesto Liberdade liberdade [revisitada] constituem mais um exemplo de exposição da dor e de seu contraponto, o empenho coletivo para denunciá-la bravamente, purgá-la, a despeito da política pública de extermínio.

Mesclando recursos cênicos e audiovisuais, a criação vem lapidada por cerca de 30 trabalhadores no contexto do Festival São Paulo Sem Censura. As frentes do teatro, da dança, da performance, da música e das artes plásticas são irradiadas, sobretudo, a partir de um dos equipamentos municipais mais organicamente diverso da cidade, o Centro Cultural São Paulo. As entranhas arquitetônicas do CCSP, ora fisicamente vazias por causa do distanciamento social, viram colunas vertebrais do projeto. O vídeo faz uma ocupação multissensorial do lugar, convertido em uma das principais plataformas do espírito de Liberdade liberdade, espetáculo fruto da parceria dos grupos Opinião (RJ) e Arena (SP), estreado em 21 de abril de 1965 na sala do núcleo carioca, no Super Shopping Center de Copacabana, sob o espectro da censura no primeiro ano de vigência do golpe civil-militar.

Nilcéia Vicente e os músicos estão num quintal, entre plantas e objetos que dão ares de uma instalação cenográfica. Talvez seja essa a instância precisa para a recontagem de Liberdade liberdade (1965) à luz do luto e do descaso institucional. Ao presentificar as palcos, plateias, arenas, subsolos e bibliotecas do CCSP, o trabalho de 2021 promove uma instalação em nossas memórias sobre a relevância da arte e da cultura para uma sociedade que se quer menos insana

Se à época o idealizador e diretor Flávio Rangel tinha dúvidas de que o palco poderia ser uma trincheira, apesar de raciocinar “como o filósofo francês Jean-Paul Sartre, que tomava a pena de escritor como uma espada”, segundo escreve o ator e biógrafo Oswaldo Mendes em Viver de teatro: uma biografia de Flávio Rangel (Nova Alexandria, 1995), a equipe que reelabora o legado dele e de seus pares nessa montagem, 56 anos depois, é convicta em sua condição militante sem abrir mão da ternura.

O registro sonoro das falas de Paulo Autran, Nara Leão, Thereza Rachel e Oduvaldo Vianna Filho é sampleado em determinadas cenas do trabalho inédito remoçado e atualizado por meio de documentos, entrevistas, números musicais e experimentos de edição. O roteiro de Millôr Fernandes foi consolidado a partir de colagem de textos e canções que ele e Rangel levantaram. O material lítero-musical tratava de momentos históricos em que o ser humano teve a sua liberdade extirpada, ameaçada ou diminuída, de maneira a lembrar que “liberdade se conquista”, conforme Rangel. Dentre os eventos estavam a Revolução Francesa, a Guerra Civil Americana, a escravidão no Brasil e o nazismo na Europa. Já a linha de tempo de hoje perpassa reflexos do Ato Institucional número 5, em 1968; da campanha pelas Diretas Já, entre 1983 e 1984; das manifestações de junho, em 2013; da eleição presidencial, em 2018; e da disseminação global do novo coronavírus, em 2020.

Print de tela Renata Carvalho, mulher trans, atriz, artista, que sofreu censura em apresentações da peça ‘O evangelho segundo Jesus, Rainha do céu’, interpreta a narradora Vivian em ‘Liberdade liberdade [revisitada]’

Nesse movimento de prospecção arqueológica, a figura de Vivian, narradora atuada por Renata Carvalho, situa que a tela “será nosso espelho”. “Não tenha medo. Já sentimos medo demais”, afirma. A condição de mulher trans de Vivian/Renata prenuncia a atualidade das questões de gênero, raça, sexualidade e decolonialidade (no sentido de desbastar a produção de conhecimento eurocêntrica), tudo devidamente salientado ao longo da experiência.

Sem fixar protagonismos, seja à frente ou detrás das câmeras, o trabalho abrange representatividades corporais e cidadãs significativas no avanço dos direitos humanos, cujas pautas são constrangidas pelo governo extremista e pela ala conservadora dos congressistas que o apoiam.

A dimensão política da cultura é indissociável dos retrocessos da sociedade brasileira, ao que Liberdade liberdade [revisitada] cala fundo sem abdicar de cantar a cidade, na melhor acepção que artistas do Teatro Oficina imprimem às celebrações realizadas ali ou nas ruas vizinhas no Bixiga, há mais de meio século. Sincronicamente, é nesse espaço que Chico Cesar pisa para entoar Béradêro, na vastidão arquitetônica desenhada por Lina Bo Bardi e Edson Elito. O cantor e compositor é acompanhado por um coro amiúde de “Vozes de faca cortando/ Como o riso da serpente”.

O momento brasileiro é tão crítico que são notórios os indícios do ambiente de degradação social, de crise econômica e de amoralidade na escalada de ódios. É nesse caldo de sociedade incivil, na definição do sociólogo Muniz Sodré, que costuma ascender líderes carismáticos como Hitler, a exemplo do que se vê no filme O ovo da serpente, de Ingmar Bergman. “Não acreditamos no apocalipse por vir, nós já o vivemos”, diz Vivian no prólogo do texto de Dione Carlos. O nome da mestra de cerimônia do futuro homenageia a astrofísica brasileira Vivian Miranda, primeira mulher trans a trabalhar na NASA, atualmente integrada à equipe desenvolvedora de um satélite. Na pulsão ficcional, é a partir de um desses objetos artificiais, caído no território do CCSP, que emana do século XXII a voz de Vivian, a mediar o conteúdo de fatos pregressos. A ação se passa em 2027 e gravações dão conta do que foi viver em anos tão conturbados.

Além da base documental, com imagens, áudios e fotografias de acontecimentos marcantes, as cenas intercalam relatos, análises ou devolutivas de personalidades como a poeta, ensaísta e dramaturga Leda Maria Martins, os diretores José Celso Martinez Corrêa (Oficina) e César Vieira (Teatro União e Olho Vivo) e os atores Celso Frateschi, Denise Stoklos e Rodrigo Mercadante. São pessoas que gravitam os paradoxos do presente, “disso que vocês chamam de agora”, conectadas às vivências que as trouxeram até aqui, enquanto testemunhas do autoritarismo civil-militar reconfigurado no Estado Democrático de Direito.

Assim como a dramaturgia de Carlos lança mão de procedimentos do retrofuturismo, a direção de Luiz Fernando Marques, a criação audiovisual de Flavio Barollo e a trilha original Gustavo Sarzi conformam o eixo conceitual da obra de extração colaborativa e assim operam representações antigas e recentes, tensionando materiais com interseções tecnológicas. O manejo de imagens nos dispositivos de uma velha ilha de edição, apropriando-se de telas em miniTV ou televisores de tubo, são artefatos bem aproveitados. Suportes constatadores dos arcaísmos com os quais o país está às voltas. Acrescente-se a ironia estética de as artes da cena estarem condicionadas ao incontornável fruição remota com o público, dadas as limitações geradas pela Covid-19, o que obrigou artistas a descobrirem outros modos de criar e de produzir na internet.

Zé Celso chama a atenção para “A coisa mais importante que existe: a percepção do aqui-agora”. Afinal, seu senso parabólico o ajudou a suportar a prisão e a tortura nos anos de chumbo. São terríveis as lembranças do subsolo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), assim como as narradas por César Vieira. Eles chamam à consciência as gerações que vieram depois deles, o grau de sofrimentos a que foram submetidos e suportaram sem desviar-se dos desejos e das razões que os levaram à arte do teatro com os grupos Oficina e TUOV.

Print da tela Na intervenção do coletivo de dança Casa das Serpentes, Ivan Manavi, Ayoluwa Chan e Kaue Souza performam no espaço de um bar a transgeneridade, estilizando a farda e a gestualidade rígida dos quartéis

Em recusa aos ditadores fardados, de ontem e de hoje, a coreografia do trio Casa das Serpentes faz da antropofagia sua ferramenta para estilizar uniformes do Exército e a rigidez do gestual militar. Ivan Manavi, Ayoluwa Chan e Kaue Souza performam sob o signo da transgeneridade – e da bandeira nacional estendida no balcão ao fundo. Evoluem no interior de um boteco emoldurado por mesas e cadeiras plásticas, amarelas, a contrastar com o verde-oliva dos figurinos. Regidos pela voz da jovem atriz Maria Bethânia em Eu vivo num tempo de guerra, composição de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri para o musical Arena conta Zumbi, dirigido por Augusto Boal no Teatro de Arena, no mesmo 1965. “É um tempo de guerra/ É um tempo sem sol”, diz o refrão.

O coletivo de dança amplifica a emoção do roteiro na medida que outros pontos da cidade são abarcados, como as janelas abertas para o Minhocão, o elevado cercado por prédios na região central, com a delicada participação de vozes infantis na passagem do Grupo Esparrama, ou as ruas e vielas da favela de Heliópolis, na intervenção da Companhia de Teatro Heliópolis. Esta, no quarto final de Liberdade liberdade [revisitada], transborda o pranto lancinante da atriz Dalma Régia. Em sua caminhada ao ar livre, Régia é acompanhada pelos colegas de grupo Alex Mendes, Davi Guimarães e Walmir Bess, paramentados de branco dos pés à cabeça, como profissionais da medicina na linha de frente ou sanitaristas. A sequência dramática conota o desespero e a luta das mães negras da periferia, com reverberações do Poema liberdade, de Guimarães, declamado por ele, Mendes e Bess.

“Liberdade restritiva”

A equipe de criação encontra em Leda Maria Martins a perspicácia e a ancoragem para brandir liberdade em 2021. Martins traça um corolário de ressignificações dessa palavra, raciocina sobre o sentido restritivo da liberdade no curso da história do Brasil. A exemplo do que aconteceu na abolição da escravatura, em 1888, quando a população negra passou da condição de escravizada, durante mais de 300 anos, a serva. Que desenho de igualdade é esse, questiona. Para a ensaísta, a democracia brasileira “se constrói na mesma paralela à construção do esquecimento”. E na balança dos direitos do que falta, e falta muita coisa: “Não é possível ter liberdade com fome. Não é possível ter liberdade sem teto. Não é possível liberdade sem saúde. Não é possível ter liberdade com violência. Não é uma palavra, a liberdade, que habita o nosso projeto de nação no Brasil”, afirma, pontuando em seguida a propósito dos teatros negros, dos corpos excluídos, da disseminação do feminicídio. Em resumo, a falta de justiça patente: “a criminalização da diferença e a naturalização da morte”.

O posicionamento político do projeto está inscrito desde sua epígrafe, pelas artistas e performers Musa Michelle Mattiuzzi e Jota Mombaça, que vivem em Salvador e Natal, respectivamente: “A destruição como experimento de um processo anticolonial; a destruição do mundo que conhecemos como possibilidade de imaginação política”. Nexo para o desabafo de Vivian: “Eu lhes garanto que é preciso muita lucidez para abraçar a loucura de um país que se rejeita, sabota, ataca, menospreza, asfixia”. Ao que o áudio original de Autran pondera que a liberdade é “viva”, “vence”, “vale”: “Onde houver um raio de esperança haverá uma hipótese de luta.”

Print de tela Na canção ‘Amor de cinza’, de Mateus Aleluia, a cantora Nilcéia Vicente e os músicos Everson Pessoa (esquerda) e Gerson da Banda ocupam um set em meio a plantas e objetos que remetem a uma instalação cenográfica

O desfecho se dá como um bálsamo, a canção Amor cinza, do baiano Mateus Aleluia, acalentada pela voz de Nilcéia Vicente, atriz, cantora e contadora de histórias acompanhada dos músicos Everson Pessoa e Gerson da Banda. “Vamos celebrar o amor/ Aqui renascer das cinzas/ Vamos festejar o cinza com amor”, conclama o canto pleno de ancestralidade africana. Eles estão num quintal, entre plantas e objetos que dão ares de uma instalação cenográfica. Talvez seja essa a instância precisa para a recontagem de Liberdade liberdade à luz do luto e do descaso institucional. Ao presentificar os palcos, plateias, arenas, subsolos e bibliotecas do CCSP, o trabalho promove uma instalação em nossas memórias sobre a relevância da arte e da cultura para uma sociedade que se quer menos insana.

Neste que acabou sendo o último projeto da curadoria de teatro desempenhada pelo jornalista e crítico Kil Abreu, fica delineada a essência de oito anos de reaquecimento das ideias e das práticas em torno da dramaturgia e do teatro de grupo, com franca disposição do público para a arte provida da pesquisa, do risco. Tanto Abreu como a gestora cultural Sonia Sobral, em pouco mais de dois anos de restituição da curadoria de dança, reavivaram as presenças de artistas e plateias. Conduziram a programação a patamares de inquietude, como se espera, porém raramente vistos, contornando toda sorte de obstáculos no cotidiano da gestão municipal. Na inauguração do Centro Cultural São Paulo, em 1982, o secretário municipal de Cultura, Mario Chamie, preconizou a vocação do espaço para as manifestações de grupos ou comunidades que reflitam “toda essa igualdade cultural brasileira que é feita justamente das diferenças”. A despeito da questionável igualdade cultural no país onde a desigualdade de renda é chaga, as palavras do poeta e crítico literário vingaram. O aparelho público idealizado por prefeitos biônicos, nomeados durante a ditadura, de fato transcendeu a certidão civil-militar, como mostra o levante Liberdade liberdade [revisitada].

Serviço:

Liberdade liberdade [revisitada]

Terça, quarta e quinta, 20h.

Próximas exibições dias 16, 17, 22, 23 e 24 de junho

Grátis.

No canal do Centro Cultural São Paulo no YouTube, aqui

Print de tela O Grupo Esparrama participou de sua janela no Minhocão com o vídeo ‘Liberdade caça jeito’, que envolveu a participação de vozes de crianças

Ficha técnica:

Criação artística:

Celso Frateschi, César Vieira, Cia do Tijolo, Chico César, Denise Stoklos, Everson Pessoa, Grupo Clariô de Teatro, Grupo Esparrama, Companhia de Teatro Heliópolis, Coletivo de dança Casa das Serpentes, Gerson da Banda, José Celso Martinez Corrêa, Leda Maria Martins, Nilcéia Vicente e Renata Carvalho.

Direção: Luiz Fernando Marques

Dramaturgia: Dione Carlos

Criação audiovisual: Flavio Barollo

Captação de imagens: Flávio Barollo, Alécio Cezar (drone) e Igor Marotti (Chico César e Teatro Oficina)

Trilha original: Gustavo Sarzi

Assistente de filmagem: Lucas Vedovoto

Figurino Renata Carvalho e Nilcéia Vicente: Dudu Bertholini

Produção: Rodrigo Fidelis – Corpo Rastreado

Projeto e realização: CCSP / Curadoria de teatro

Casa das Serpentes:

Ivan Manavi – Edição de vídeo, produção musical, coreógrafo e performer

Ayoluwa Chan – Performer e confecção dos figurinos

Kaue Souza – Performer

Companhia de Teatro Heliópolis:

Direção geral – Miguel Rocha

Poema Liberdade – Davi Guimarães

Elenco – Alex Mendes, Dalma Régia, Davi Guimarães e Walmir Bess

Direção de fotografia e filmagem – Ícarus Cardoso

Edição e filmagem – Eduardo Melo

Criação de trilha sonora – Renato Navarro

Produtor – Donizete Bomfim / Cine Favela

Realização: Companhia de Teatro Heliópolis

Cia do Tijolo:

Criação e atuação – Karen  Menatti e Rodrigo Mercadante.

Violão – Marcos Coin

Criação audiovisual – Flávio Barollo.

Canção Ainda Cabe Sonhar – Jonathan Silva

Grupo Clariô de Teatro:

Espetáculo: Urubu come carniça e vôa!

Escritos crônicos: Miró de Muribeca

Direção: Mário Pazini e Naruna Costa

Atores/criadores – Alexandre Souza, Martinha Soares, Naloana Lima, Naruna Costa e Washington Gabriel

Dramaturgia – Grupo Clariô de Teatro

Assessoria dramatúrgica – Will Damas

Cenário – Alexandre Souza (João)

Figurinos e adereços – Martinha Soares e Naruna Costa

Maquiagem – Naloana Lima

Iluminação – Will Damas

Trilha da peça – composição de Di ganzá e Naruna Costa.

Produção executiva – Washington Gabriel

Operador de luz – Rager Luan

Operador de som – Rager Luan

Filmagem e edição – Djalma Amorim

Grupo Esparrama:

Vídeo: Liberdade caça jeito

Criação – Grupo Esparrama (Iarlei Rangel, Kleber Brianez, Ligia Campos e Rani Guerra)

Roteiro e edição – Iarlei Rangel

Narração – Kleber Brianez

Intérprete da canção – Rani Guerra

Vozes das crianças – Maria Venâncio Matsumoto, Murilo de Campos Brianez e Nicholas Lago Martins de Araújo

Centro Cultural São Paulo:

Prefeito de São Paulo – Ricardo Nunes

Secretário Municipal de Cultura – Alê Youssef

Diretor do Centro Cultural São Paulo – Leandro Lehart

Supervisor geral – Rodolfo Beltrão

Supervisora de curadorias e programação – Nerie Bento

Curadoria de teatro – Kil Abreu

Assistente de curadoria de teatro – Urion Braga

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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