30.8.2020 | por Valmir Santos
Em uma das peças menos conhecidas de Mário Bortolotto, À queima-roupa , escrita em 1993, Cardan é um homicida que deixa a cadeia após cumprir 12 anos de pena. Em poucos dias na rua, assassina mais dois homens. À bala, em assalto a um professor. E por enforcamento, ao terceirizar uma vingança: o irmão de seu melhor amigo “roubou” a namorada deste. Em diferentes partes da história, um mendigo aborda o ex-detento para manifestar sua fome, mas não angaria a caridade alheia. Até o desfecho, quando pede um pedaço de cachorro quente que ele está comendo. Ato contínuo, o protagonista abocanha o restante do lanche e, mastigando, coloca um revólver na mão do pedinte que, atônito, aos poucos se recompõe, empunha a arma e mira a plateia. Blecaute seco. A leitura de À queima-roupa traz as digitais da desenvoltura com que Bortolotto dirige Barrela, seu primeiro Plínio Marcos em cerca de 40 anos de dramaturgia. As afinidades eletivas vão além da superfície quando se trata de sujeitos marginalizados pela sociedade ou entranhados na marginalidade.
Leia mais30.4.2020 | por Valmir Santos
Logo na primeira linha, o narrador de Elizabeth Costello pontua sobre “como nos levar de onde estamos, que é, por enquanto, lugar nenhum, para a margem de lá”. Aludir à imagem da construção de pontes serve como poderoso instrumento de navegação pelo romance de J.M. Coetzee, em que pesem as saborosas e por vezes mal-humoradas contendas da protagonista com familiares, intelectuais ou admiradores. A personagem-título, uma prestigiada escritora veterana, lida com ideias morais, filosóficas e estéticas sem perder de vista o substrato da vida. Sua inquietude figura nos traços de personalidade e de linguagem, como bem cultiva o monólogo de mesmo nome idealizado e atuado por Lavínia Pannunzio com adaptação e direção de Leonardo Ventura.
Leia mais16.3.2020 | por Valmir Santos
Não matarás e Não cometerás adultério (este desdobrou no longa-metragem Não amarás) estão entre os filmes para a televisão que Krzysztof Kieslowski dirigiu na juventude a partir dos dez mandamentos bíblicos do Antigo Testamento. Considerada obra-prima do polonês, a série Decálogo foi rodada no final da década de 1980 em plena agonia do regime comunista no país do leste europeu. Os episódios tinham como pano de fundo um conjunto habitacional, microcosmo do esgarçamento do tecido social. A lembrança de Kieslowski é motivada pelo encontro com o espetáculo Tu amarás, que o grupo chileno Bonobo apresentou durante a 7ª MITsp.
Leia mais13.3.2020 | por Valmir Santos
A artista francesa Phia Ménard convida espectadores a explorar o espaço da imaginação e lá construir e destruir coisas belas e terríveis – uma premissa da arte, convenhamos. Mas a centelha está em proceder em tempo real às etapas de arquitetar e ruir uma obra dentro da obra nos 90 minutos de percepções ambíguas quanto a vazio, força e desesperança em Contos imorais – parte 1: casa mãe (Contes immoraux – partie 1: maison mère).
Leia mais10.3.2020 | por Beth Néspoli
Há três décadas, em uma entrevista, a atriz portuguesa Maria do Céu Guerra vaticinou que os festivais de teatro se tornariam cada vez mais importantes. Em síntese, o argumento é o de que um evento dessa natureza altera a fruição dos participantes, porque desloca foco da atenção do entretenimento e o lança sobre o fenômeno da criação artística. Idealizada pelo diretor Antônio Araújo e pelo produtor Guilherme Marques, a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) surge em 2014 com essa ambição. Com o intuito de produzir pensamento sobre as artes cênicas tendo como polo irradiador teatralidades de diferentes geografias, formas e temas, e as respectivas vinculações entre cena e territórios de origem tornaram-se também objeto de análises promovidas pelos organizadores.
Leia mais6.2.2020 | por Beth Néspoli
Eu sempre gostei de tratar de coisas que eu mesmo não sei nomear, afirmou o dramaturgo e diretor Alexandre Dal Farra ao participar da 32ª edição do Encontro com Espectadores, junto ao ator e diretor Clayton Mariano. Ele se referia ao modo como investiga as relações sociais e políticas em sua obra: no calor dos acontecimentos, sem a visão panorâmica trazida pelo distanciamento temporal. Pois tal operação poética, que vê nas incertezas do presente a matéria por excelência a ser tratada no palco, constitui a peça Floresta, com direção e texto de sua autoria.
Leia mais1.2.2020 | por Valmir Santos
Em seu espetáculo mais recente, Bom Retiro meu amor – ópera samba, o Teatro União e Olho Vivo fornece respostas poéticas a questões que outros grupos ou companhias também se fizeram ao assumir uma prática artística de ambição popular. Uma passagem pode ilustrar o nível de inquietude movida décadas atrás. No 1º Seminário de Teatro Independente que ajudou a realizar em São Paulo, em 1976, na Fundação Getúlio Vargas, constavam as seguintes provocações:
Leia mais11.12.2019 | por Valmir Santos
O palhaço e bufão argentino Chacovachi, nome artístico de Fernando Cavarozzi, costuma sugerir aos pares: “O público deve escutar não apenas o que você diz, mas o que pensa”. Essa proposição é levada a sério nos espetáculos Ordinários e O circo bélico. O Grupo LaMínima e a Trupe Lona Preta, respectivamente, consagram o riso crítico nos limites de quem está pisando em campo minado e, mesmo assim, não se dobra aos tempos de brucutus.
Leia mais1.12.2019 | por Maria Eugênia de Menezes
O corpo atravessa Stabat Mater. É a partir dele que surgirão as imagens e ideias manipuladas por esse espetáculo concebido e atuado por Janaina Leite. O corpo será espaço para o real – evocado constantemente nessa criação. O corpo será o símbolo da sacralidade e da profanação: o corpo imaculado da Virgem Maria, o corpo eviscerado das mulheres assassinadas em filmes de terror, o corpo da mãe.
Leia mais23.11.2019 | por Beth Néspoli
“O que a poeta valorizava sobremaneira era a vida comum, na qual sempre encontrava motivo para assombro”, escreve Regina Przybycien no prefácio do livro Amor sem fim que reúne poemas da polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012). O comentário dá uma pista sobre o que motiva a escolha de alguns dos versos dessa escritora, premiada com o Nobel de Literatura em 1996, para integrar a dramaturgia do solo Eu de você, da atriz Denise Fraga, dirigido por Luiz Villaça. A coleta de histórias reais a partir de uma convocação em diferentes mídias está na gênese desse espetáculo no qual elas surgem fragmentadas, editadas e entrelaçadas a poesias, trechos de romances e canções.
Leia mais